A Justiça da Inglaterra condenou, nesta sexta-feira (14), a mineradora BHP, acionista da Samarco ao lado da Vale, por sua responsabilidade no rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), considerado o maior desastre socioambiental da história do Brasil.
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A decisão, proferida pelo Tribunal Superior de Londres, abre caminho para uma das maiores indenizações já analisadas pela corte britânica e envolve cerca de 620 mil autores, entre moradores, comunidades, igrejas, empresas e 31 municípios atingidos.
Embora a condenação reconheça a responsabilidade da BHP, o valor final das indenizações será estabelecido apenas na segunda fase do julgamento, prevista para outubro de 2026. O montante reivindicado pelos atingidos soma aproximadamente R$ 230 bilhões.
Responsabilidade objetiva e negligência grave
Em sua decisão, a Justiça inglesa concluiu que a BHP possui responsabilidade direta e objetiva pelo colapso da barragem, uma vez que exercia controle e influência significativa sobre a operação da Samarco. Isso significa que a empresa deve responder pelos danos independentemente de comprovação de culpa, por estar associada a uma atividade considerada de risco.
O tribunal também apontou negligência grave na atuação da mineradora. Os juízes destacaram que a empresa:
- Ignorou alertas técnicos importantes;
- Não realizou estudos essenciais de estabilidade;
- Autorizou a elevação da barragem mesmo diante de riscos claros de ruptura.
Durante o processo, a defesa dos atingidos apresentou documentos que indicariam que a BHP recebeu “sinais de alerta” pelo menos seis anos antes da tragédia. Entre eles, está a detecção de uma rachadura em agosto de 2014, classificada pelos advogados como uma “evidência de falha iminente” do talude.
Mesmo após a adoção de medidas emergenciais, o fator de segurança recomendado pelos especialistas não foi alcançado.
O que diz a BHP
A mineradora informou que vai recorrer da decisão no Reino Unido e reiterou que mantém compromisso com a reparação no Brasil.
Em nota, a empresa afirmou:
“A BHP reafirma sua dedicação às ações de reparação e compensação já em curso e entende que a ação britânica é duplicativa, uma vez que os mecanismos brasileiros já contemplam o atendimento às pessoas afetadas.”
Segundo dados apresentados pela empresa, desde 2015 BHP, Vale e Samarco já destinaram US$ 13,4 bilhões às ações de reparação e compensação, incluindo o acordo firmado em 2024 com autoridades brasileiras, no valor de R$ 170 bilhões. Mais de 610 mil pessoas foram indenizadas no Brasil, sendo cerca de 240 mil também parte da ação no Reino Unido.
A Justiça inglesa reconheceu a validade das quitações assinadas por pessoas já indenizadas no Brasil, o que pode reduzir parte dos valores pleiteados.
Processo no Reino Unido cresce desde 2018
A ação coletiva contra a BHP foi protocolada em 2018, mas ganhou corpo apenas em 2022, quando a Justiça britânica decidiu assumir o julgamento. À época do desastre, a mineradora estava listada na Bolsa de Valores de Londres, o que permitiu que fosse processada no país.
A primeira fase do julgamento ocorreu entre outubro de 2024 e março de 2025, com oitiva de especialistas, testemunhas, técnicos e peritos. A segunda fase, marcada para outubro de 2026, será dedicada à avaliação individual dos danos e à definição dos valores de indenização.
A Vale não integra o processo britânico, mas firmou acordo com a BHP para dividir os custos da condenação.
Pogust Goodhead: “Marco histórico para as vítimas”

O escritório internacional Pogust Goodhead, responsável pela ação, comemorou a decisão.
Em nota, declarou:
“A sentença representa um marco para as vítimas, que há dez anos lutam por responsabilização efetiva. O tribunal rejeitou as tentativas da BHP de limitar sua responsabilidade e autorizou o avanço do processo para a fase de avaliação dos danos.”
O escritório também destacou que, com a decisão, vítimas e municípios brasileiros poderão apresentar ações até, pelo menos, setembro de 2029.
Enquanto isso, no Brasil: 10 anos depois, ninguém foi condenado
Paralelamente ao avanço internacional, o cenário judicial brasileiro segue marcado por lentidão e impasses. O processo criminal sobre o rompimento da barragem de Fundão, que matou 19 pessoas, destruiu comunidades como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo e lançou 40 milhões de m³ de rejeitos na bacia do Rio Doce até o oceano, permanece sem decisão definitiva.
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Em novembro de 2024, a Justiça Federal absolveu Samarco, Vale, BHP, a consultoria VogBR e todos os réus. A juíza Patricia Alencar Teixeira de Carvalho afirmou que “não foi possível identificar condutas individuais” que contribuíssem para a tragédia, aplicando o princípio do in dubio pro reo.

O Ministério Público Federal recorreu, sustentando que houve omissões graves dentro da organização da Samarco e que dirigentes tinham conhecimento técnico sobre riscos de liquefação da barragem.
Entre os nomes citados no recurso estão:
- Ricardo Vescovi
- Kleber Terra
- Germano Lopes
- Wagner Alves
- Daviély Silva
- Samuel Paes Loures
Contudo, o recurso ainda não foi julgado, e parte das acusações já prescreveu.
Acordo de repactuação: reparação segue em curso
Na esfera cível, a reparação foi reorganizada em outubro de 2024 com a assinatura de um novo acordo entre mineradoras e governos federal e estaduais. O valor total acordado é de R$ 170 bilhões, incluindo R$ 38 bilhões já investidos anteriormente.
A repactuação ocorreu após constatação de que as ações da Fundação Renova eram insuficientes para recuperar os danos. O novo modelo distribui responsabilidades entre:
- União
- Governo de Minas Gerais
- Governo do Espírito Santo
- Samarco
- Fundação Renova
O pacto inclui investimentos em saneamento, mobilidade, reassentamentos, projetos comunitários e recuperação ambiental. A União passou a administrar um programa de transferência de renda para agricultores e pescadores afetados.
A Samarco, responsável pelas indenizações individuais e reassentamentos, afirma ter pago R$ 14 bilhões. Já a Fundação Renova registrava R$ 18,1 bilhões executados até setembro de 2024.
Moradores de Bento Rodrigues e outras comunidades, contudo, relatam longo atraso nas obras de reconstrução e falhas persistentes na reparação ambiental, reflexo da bacia do Rio Doce, que segue empobrecida em biodiversidade.
10 anos depois: um desastre ainda sem encerramento
Uma década após o rompimento da barragem, o Brasil ainda tenta reparar seus impactos e responsabilizar seus causadores, enquanto a Justiça britânica avança em um julgamento que pode se tornar referência global para casos de danos socioambientais transnacionais.
Enquanto o processo criminal brasileiro permanece indefinido, a decisão inglesa, inédita e contundente, coloca a BHP diante de sua maior disputa judicial no exterior e reforça a pressão por respostas e justiça às vítimas de um desastre que ainda ecoa nas águas e comunidades do Rio Doce.









