Um ano após o trágico acidente com o voo 2283 da Voepass, uma nova revelação escancara o impacto da negligência e da cultura de pressão na companhia aérea. Em áudios obtidos pela CNN e pelo programa Fantástico, um funcionário da área de manutenção admite que não registrou uma falha crítica no avião acidentado, pressionado por superiores.
“Tô com um remorso desgraçado. Não tô conseguindo nem dormir. Errei, errei de não ter mandado por escrito”, desabafou.
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A conversa foi gravada em setembro de 2024, cerca de um mês após o acidente. Sem saber que estavam sendo gravados, dois funcionários da Voepass falam sobre os problemas mecânicos da aeronave e a omissão do defeito no sistema de degelo, responsável por remover o acúmulo de gelo nas asas durante o voo. Outro colega, na gravação, orienta:
“Printa, manda pro teu celular, guarda isso daí”, referindo-se à importância de reunir provas da negligência. “É sujeira”, conclui.
Tragédia anunciada
No dia 9 de agosto de 2024, o voo 2283, um ATR 72-500 prefixo PS-VPB, partiu de Cascavel (PR) rumo a Guarulhos (SP). A aeronave caiu em Vinhedo (SP) e nenhum dos 62 ocupantes sobreviveu — 58 passageiros e 4 tripulantes. Foi o pior acidente da aviação comercial regular brasileira desde 2007.

Horas antes da decolagem, o avião havia pousado em Ribeirão Preto, onde o comandante relatou verbalmente que o sistema de degelo apresentava falhas. Contudo, não houve registro formal da queixa. Segundo um mecânico da empresa, isso não era incomum:
“A gente voava sob pressão. Não podia ficar colocando sempre pane na aeronave”.
A omissão foi fatal. Boletins meteorológicos alertavam para a presença intensa de gelo em todas as altitudes naquela manhã. Mesmo assim, a aeronave não baixou altitude para derreter o gelo acumulado, como recomendam os manuais. O sistema de degelo foi acionado três vezes durante o voo, mas ao realizar uma curva para aproximação final, o avião perdeu sustentação e caiu, segundo especialistas.
“Papa Bravo”: um histórico preocupante
O avião envolvido no acidente era conhecido internamente como “Papa Bravo” — apelido derivado de seu prefixo. Ex-funcionários relatam que o modelo tinha um histórico de falhas crônicas, especialmente no sistema “boot”, que infla para expulsar o gelo das asas.

“Esse avião não estava adequado para voar nas condições de gelo daquele dia”, afirmou Luiz Cláudio de Almeida, ex-comandante da Voepass.
Segundo Almeida, o sistema nunca funcionou corretamente no Papa Bravo. Ele também denuncia uma cultura de reaproveitamento de peças de aeronaves desativadas, o que levanta questionamentos sobre a integridade da frota. “Já houve casos de peças retiradas de aviões que haviam pousado em locais impróprios, como uma pastagem em Rondonópolis, em 2016”, denuncia.
Passageiros enganados?
Outro ponto que causou revolta entre os familiares das vítimas foi a falta de transparência na comercialização das passagens. Muitos passageiros acreditavam que voariam pela Latam, empresa com quem haviam comprado os bilhetes. O nome “Voepass” aparecia apenas em letras pequenas no cartão de embarque, e o código “2Z”, desconhecido pela maioria, era o único indicativo da real operadora do voo.
Entre as vítimas estavam Nélvio e Gracinda, pais de Eduarda Hubner, que viajavam para São Paulo para assistir a um show de Ney Matogrosso; e o casal Hiáles e Daniela, que pretendiam embarcar para Atlanta, onde ela participaria de competições de fisiculturismo.
“Minha mãe me mandou uma mensagem às 11h49 dizendo: ‘Estamos embarcando agora, se cuidem, está vento frio’”, lembra Eduarda. O avião decolou às 11h58. Minutos depois, caiu.
Repercussão e luta por justiça
A Anac suspendeu as operações da Voepass em março de 2025, citando “violações nas condições de segurança“, mas a proibição definitiva só veio em 24 de junho, quase dez meses após o acidente.

As famílias das vítimas formaram uma associação em busca de respostas. Para Eduarda, “um avião não cai do nada”. Ela diz que a tragédia foi fruto de “uma série de negligências”. Após a perda dos pais, passou a ser responsável pelos irmãos de 21 e 12 anos, assumindo uma função materna.
O relatório final do Cenipa ainda não foi divulgado, e ex-funcionários cobram a liberação do áudio do cockpit, que pode revelar os momentos finais da tripulação. Enquanto isso, o país se pergunta: quantas falhas são necessárias até que uma tragédia seja evitada — e não lamentada?