São Paulo e a crise hídrica: reservatórios em níveis críticos e plano de contingência em ação

Um novo período de escassez de água pode estar chegando às torneiras paulistas. O fantasma da crise hídrica de 2014-2015 volta a assombrar São Paulo em meio a um cenário de catástrofe climática, com reservatórios da região metropolitana atingindo níveis críticos.

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O Sistema Cantareira, o maior da Grande São Paulo, encerrou setembro com apenas 28% do volume útil, o menor índice para o mês desde 2015. Especialistas alertam que, quando o nível fica abaixo de 30%, a operação é considerada em faixa de restrição, situação inédita na última década.

De acordo com o relatório mensal do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), os índices de chuva e vazão “se mantiveram bem abaixo da média histórica”. Enquanto a precipitação acumulada ficou em 58% da média, a vazão afluente do sistema atingiu apenas 41% do esperado para o período.

O problema é agravado pelas mudanças climáticas: mesmo que as chuvas fiquem próximas da média histórica, os reservatórios podem permanecer em faixas críticas. Antonio Eduardo Giansante, engenheiro e consultor de saneamento, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, observa:

“Chama a atenção que no Sistema Cantareira, a cada ano, o volume mínimo durante as estiagens é cada vez menor com o passar do tempo.”

Nos últimos 12 meses, o sistema recebeu 1.358 milímetros de chuva, cerca de 10% abaixo da média histórica. Se o verão for menos chuvoso, o agravamento da situação é praticamente certo, reforçando a necessidade de medidas emergenciais. A Sabesp, responsável pelo abastecimento, adotou desde agosto a redução da pressão da água durante o período noturno, inicialmente de 21h às 5h, ampliada depois para 19h às 5h, como medida de contingência para preservar os níveis dos reservatórios e reduzir o desperdício.

No entanto, em regiões periféricas e áreas mais altas, a água não chega de forma adequada, deixando moradores com as torneiras secas em parte do dia. O geógrafo Wagner Costa Ribeiro, professor da Universidade de São Paulo, alerta:

“É uma medida que prejudica as camadas mais baixas da população, não apenas porque são quem muitas vezes não têm capacidade de reservação, mas também moram em áreas mais altas, o que dificulta a chegada da água após a retomada do bombeamento.”

O cenário da crise hídrica reflete um ciclo hidrológico desregulado, causado pelas mudanças climáticas, que provocam chuvas concentradas e intensas alternadas com longos períodos de seca. Ribeiro resume:

“A São Paulo da garoa está cada vez mais distante; o que temos é a São Paulo das trovoadas.”

Chuvas fortes não resolvem o abastecimento, pois frequentemente causam enchentes e erosão do solo, desperdiçando água que poderia abastecer os reservatórios. Luiz de Campos Júnior, geógrafo do projeto Rios e Ruas, explica:

“As alterações no regime climático têm nos atingido. São períodos de chuva superconcentrados, que chegam a ser catastróficos, alternados com seca. Parte dessa água escoa ou erode o solo, diminuindo ainda mais a vazão dos rios.”

A crise não se restringe à Grande São Paulo. No Rio Grande do Sul, chuvas intensas também não serviram para abastecimento, mostrando que o problema é nacional. A recorrente escassez de água paulistana exige medidas mais eficazes. Especialistas apontam a necessidade de reduzir perdas na distribuição, que chegam a 22% a 30% do total, e intensificar a manutenção da rede. Ribeiro defende:

“É urgente fazer um mapeamento do problema e trabalho de manutenção para eliminar a perda de água nas tubulações.”

Crise hídrica: Ponto de controle da represa de Paiva Castro, em Mairiporã (SP), parte do sistema Cantareira, que abastece São Paulo - Foto: Edilson Dantas/O GLOBO
Ponto de controle da represa de Paiva Castro, em Mairiporã (SP), parte do sistema Cantareira, que abastece São Paulo – Foto: Edilson Dantas/O GLOBO

Vicente Andreu Guillo, ex-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), ressalta o desafio:

“Seria preciso um investimento altíssimo com zero retorno em termos de receita.”

Além disso, programas de reúso de água são apontados como gargalo, já que a coleta e tratamento de esgoto ainda não acompanham a distribuição eficiente do sistema. Campos Júnior observa:

“A distribuição, na região metropolitana, é muito boa. Mas a coleta e o tratamento de esgoto ainda não. Só coletado não adianta.”

A proteção dos mananciais também é fundamental. Antonio Eduardo Giansante destaca:

“Ter política contínua de recuperação e preservação de mananciais, principalmente pela revegetação, já não é algo secundário, mas primordial.”

Adriano Sampaio, do projeto Existe Água em SP, defende soluções locais e comunitárias:

“Precisamos recuperar rios e córregos, criar minirreservatórios com gestão comunitária da água.”

Outro fator agravante é o uso intensivo da água para irrigação agrícola, que compete com o abastecimento urbano. Vicente Guillo ressalta:

“O principal problema do Cantareira é o conflito com a irrigação. Seria necessário um acordo entre governo, Sabesp e produtores rurais para respeitar o interesse público.”

Mesmo diante da queda nos níveis dos reservatórios, a Sabesp aumentou a captação de água em 2025, atingindo recordes históricos. Entre janeiro e setembro, a retirada média foi de 71,9 m³/s, superando o período pré-crise, quando a média era de 69 m³/s, e bem acima da retirada de 58 m³/s registrada durante a crise de 2014-2016. Eduardo Caetano, coordenador do Instituto Água e Saneamento (IAS), explica:

“O aumento na retirada indica maior demanda, mas também pode refletir perdas de água ao longo do sistema.”

Adriana Cuartas, pesquisadora do Cemaden, complementa:

“O armazenamento no final da estação chuvosa ficou em 58%, e a extração média de água ficou acima do permitido. A crise hídrica é resultado da combinação entre escassez e excesso de retirada.”

Diante deste cenário, o governo de São Paulo anunciou, em 24 de outubro, um plano de contingência para o abastecimento, elaborado pela Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, no Comitê Estadual de Mudanças Climáticas.

Crise hídrica: Este é o terceiro ano consecutivo com precipitações abaixo da média em São Paulo - Foto: Divulgação/Sabesp
Este é o terceiro ano consecutivo com precipitações abaixo da média em São Paulo – Foto: Divulgação/Sabesp

O plano prevê redução de pressão nos encanamentos por até 16 horas, exploração do volume morto das represas e, em cenário extremo, rodízio de abastecimento. Foram criadas sete faixas de operação, representando níveis graduais de criticidade:

  • Faixa 1 (abaixo de 43,8%): revisão das transposições de bacia e reforço das campanhas de uso consciente;
  • Faixa 2 (abaixo de 37,8%): redução da pressão por 8 horas noturnas;
  • Faixa 3 (abaixo de 31,8%): redução de pressão por 10 horas, economia de 8 mil litros por segundo;
  • Faixa 4 (abaixo de 25,8%): pressão limitada por 12 horas;
  • Faixa 5 (abaixo de 19,8%): restrições de 14 horas;
  • Faixa 6 (abaixo de 9,8%): contenção de 16 horas, início da captação do volume morto, abastecimento emergencial a serviços essenciais;
  • Faixa 7 (nível zero): rodízio, com alternância diária das áreas que terão ou não água.

Atualmente, a Grande São Paulo está na faixa 3, com redução da pressão por 10 horas diárias. O rodízio, considerado a medida mais extrema, só poderá ser adotado mediante autorização do Conselho Diretor da Arsesp. Thiago Mesquita Nunes, diretor da Arsesp, explica:

“Ela difere bastante da redução de pressão que temos atualmente: no rodízio, setorizamos as áreas de abastecimento e definimos horários específicos de fornecimento para cada local, de acordo com a gravidade da situação. Essa é a medida mais extrema e, felizmente, não é um cenário próximo do que vivemos hoje”

O diretor da Arsesp ainda reforça a importância de acompanhar o nível dos reservatórios a longo prazo:

“Os reservatórios têm um comportamento natural de queda durante o período seco e de elevação durante o período úmido. Nossa preocupação não é com o estágio do dia de hoje, mas sim com o comportamento futuro, garantindo que os níveis permaneçam dentro dos patamares de segurança definidos na curva de contingência”

O plano também prevê prioridade de abastecimento para serviços essenciais e populações vulneráveis, incluindo beneficiários de tarifa social, hospitais, unidades de pronto atendimento, escolas, abrigos, instituições de longa permanência, delegacias de polícia, presídios e Corpo de Bombeiros.

A situação de escassez hídrica em São Paulo é resultado da combinação entre mudanças climáticas, chuvas abaixo da média, extração intensa, perdas na rede de distribuição e uso para irrigação agrícola.

Especialistas defendem ações urgentes, como manutenção de tubulações, proteção de mananciais, reúso de água, recuperação de rios e córregos e acordos com o setor agrícola. Sem essas medidas, a população poderá enfrentar cenários críticos ainda mais severos nos próximos anos, tornando a crise hídrica uma realidade permanente na maior metrópole do país.

Falta de chuvas gera preocupação para o plantio do arroz, que tem 77% da produção irrigada - Foto: Divulgação/Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga)
Falta de chuvas gera preocupação para o plantio do arroz, que tem 77% da produção irrigada – Foto: Divulgação/Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga)

Histórico da crise

A última grande crise hídrica ocorreu entre 2014 e 2015, período em que o Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de cerca de 10 milhões de pessoas na Grande São Paulo, chegou a operar com menos de 20% de capacidade. Na época, medidas emergenciais como redução da pressão noturna e racionamento pontual foram implementadas.

Após a crise, a Sabesp manteve políticas de gestão de pressão e monitoramento contínuo, mas a situação atual demonstra que essas medidas foram insuficientes para garantir resiliência diante de anos consecutivos de estiagem e aumento da demanda.

Níveis de reservatórios: comparativos ano a ano

  • 2010-2013 (pré-crise): média de retirada de água de 69 m³/s, reservatórios acima de 50% da capacidade ao final da estação chuvosa.
  • 2014-2016 (crise): retirada média caiu para 58 m³/s, Cantareira atingiu menos de 20% em pontos críticos.
  • 2017-2022 (pós-crise): recuperação gradual, média de retirada de 62,3 m³/s, reservatórios entre 50-60% no período chuvoso.
  • 2023-2025 (situação atual): nível das represas em 28,7%, retirada recorde de até 73 m³/s em fevereiro de 2025, em meio a chuvas abaixo da média.

Autor

  • Nicolas Pedrosa

    Jornalista formado pela UNIP, com experiência em TV, rádio, podcasts e assessoria de imprensa, especialmente na área da saúde. Atuou na Prefeitura de São Vicente durante a pandemia e atualmente gerencia a comunicação da Caixa de Saúde e Pecúlio de São Vicente. Apaixonado por leitura e escrita, desenvolvo livros que abordam temas sociais e histórias de superação, unindo técnica e sensibilidade narrativa.

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