Como Moraes, Dino e Fux se diferenciam no julgamento da Trama Golpista de 2022

O julgamento da chamada trama golpista chegou ao terceiro voto nesta quarta-feira (10) na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), e as divergências entre os ministros ficaram claras. O processo envolve o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus, acusados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) de participarem de uma tentativa de golpe de Estado em 2022.

LEIA TAMBÉM: Dia 4 do julgamento: Fux diverge e vota por absolver Bolsonaro e a maioria dos réus

Até o momento, o placar parcial aponta 2 a 1 a favor da condenação de Bolsonaro, com votos de Alexandre de Moraes e Flávio Dino pela responsabilização do ex-presidente. O voto do ministro Luiz Fux, o terceiro a se manifestar, trouxe pontos de divergência que podem alterar o desfecho do julgamento, programado para os votos da ministra Cármen Lúcia e do ministro Cristiano Zanin.

Um voto de perfil garantista e técnico

O voto de Luiz Fux se destacou por seu caráter técnico e garantista, reforçando limites da atuação penal do STF. Logo no início, o ministro ressaltou que o juiz deve atuar como “controlador da regularidade da ação penal”, e não como ator político.

“Condenar exige certeza; absolver requer humildade quando há dúvida.”

Essa frase, repetida diversas vezes, norteou a análise de Fux, que buscou diferenciar o que constitui prova suficiente de crime e o que configura apenas percepção moral ou opinião pública. Para ele, críticas de Bolsonaro às urnas eletrônicas, ainda que repetidas e muitas vezes infundadas, não configuram crime contra o regime democrático.

Luiz Fux durante quarto dia de julgamento de Bolsonaro e 7 aliados sobre trama golpista na Primeira Turma do STF - Foto: Adriano Machado/Reuters
Luiz Fux durante quarto dia de julgamento de Bolsonaro e 7 aliados sobre trama golpista na Primeira Turma do STF – Foto: Adriano Machado/Reuters

Fux também avaliou a chamada “minuta do golpe”, encontrada na residência do ex-ministro Anderson Torres, como “mera cogitação sem efeito prático”, sem vinculação direta a ordens ou planejamento executório do ex-presidente.

Delação premiada de Mauro Cid: consenso parcial entre os ministros

Todos os três ministros analisaram a validade da colaboração premiada de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência.

Moraes afirmou que eventuais falhas na delação não invalidam o acordo, mas merecem análise quanto à efetividade e aos benefícios concedidos. Dino considerou a delação válida e suficiente para sustentar condenações.

Confira “Filhos do Silêncio” de Andrea dos Santos

“As provas orais, deslindadas pelo delator, me parecem absolutamente compatíveis com o acervo probatório dos autos”, disse Dino.

Fux acompanhou os colegas na validação do acordo, mas ponderou que anular a delação seria desproporcional, afirmando:

“Estou acolhendo a conclusão do relator, o parecer do Ministério Público e voto no sentido de se aplicar ao colaborador os benefícios propostos pela PGR.”

Essa convergência deixa claro que, apesar das divergências em outros pontos, a delação de Cid é um pilar do processo aceito pelo STF.

Competência para julgar: Primeira Turma ou Justiça Comum?

Moraes durante seu voto no julgamento de Bolsonaro e outros 7 réus da trama golpista - Foto: Adriano Machado/Reuters
Moraes durante seu voto no julgamento de Bolsonaro e outros 7 réus da trama golpista – Foto: Adriano Machado/Reuters

Outro ponto de divergência relevante foi a competência para julgar o caso.

  • Moraes e Dino defenderam que a Primeira Turma do STF é competente, uma vez que o processo envolve ex-agentes públicos de relevância federal.
  • Fux discorda: para ele, os réus não possuem foro privilegiado, e o julgamento deveria ocorrer na Justiça Comum, sendo a competência do STF absoluta e passível de reconhecimento a qualquer tempo.

“A competência é do tipo absoluta, não podendo ser alterada pelas partes e pode ser reconhecida a qualquer tempo”, afirmou Fux.

Essa diferença revela o debate sobre o alcance do STF em casos de grande repercussão política, especialmente quando envolve ex-mandatários e militares de alta patente.

Direito de defesa e “document dumping”

O direito de defesa também separou as visões dos ministros.

  • Moraes e Dino rejeitaram a alegação de cerceamento, apontando que os advogados não utilizaram todas as testemunhas disponíveis e não apresentaram provas próprias suficientes.
  • Fux, no entanto, reconheceu prejuízo à defesa diante do volume gigantesco de documentos entregues às defesas em prazos curtos — cerca de 70 terabytes de informações, equivalentes a 30 bilhões de páginas.

“Em razão da disponibilização tardia de um tsunami de dados, sem identificação prévia, eu acolho a preliminar de violação constitucional de ampla defesa e declaro cerceamento de defesa”, afirmou Fux.

Ele classificou o episódio como “document dumping”, prática que sobrecarrega a defesa e compromete a regularidade processual.

Organização criminosa: divergência total

A imputação de organização criminosa foi outro ponto de divergência.

  • Moraes e Dino concordaram com a PGR, afirmando que os réus atuaram em conjunto de forma coordenada para atacar instituições democráticas, aplicando pena agravada a Bolsonaro como líder da suposta organização.
  • Fux rejeitou a caracterização:

“Não houve, na narrativa, demonstração na prática do delito de organização criminosa. Os réus não usaram armas nem atuaram de forma coordenada para cometer crimes com penas superiores a quatro anos, como exige a lei para esse tipo penal.”

Segundo Fux, o que ocorreu foi um concurso eventual de pessoas, distinto de uma associação estável e permanente. Essa interpretação derruba o argumento da PGR e pode reduzir significativamente a pena, que, se aplicada conforme a acusação, chegaria a 17 anos de prisão.

Crimes contra a democracia: golpe de Estado x abolição do Estado Democrático de Direito

Moraes e Dino defendem a aplicação simultânea de dois crimes: golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, considerando que os atos de 8 de janeiro constituem um plano articulado de subversão.

Fux, em contraste, aplica o princípio da unificação dos crimes:

“Não se pode falar em golpe sem a deposição concreta de um governo eleito. Os atos de 8 de janeiro, embora violentos, configuram manifestações desorganizadas, sem articulação suficiente para caracterizar golpe.”

Para ele, atos preparatórios ou vandalismo isolado não configuram automaticamente tentativa de golpe. Ele citou exemplos de 2013 e 2014, quando grupos de black blocs depredaram patrimônio público sem implicações penais por tentativa de abolição do regime.

Dano qualificado e subsidiariedade

A aplicação do crime de dano qualificado também gerou divergência.

O ministro Flávio Dino durante sessão no plenário do STF - Foto: Rosinei Coutinho/STF
O ministro Flávio Dino durante sessão no plenário do STF – Foto: Rosinei Coutinho/STF
  • Moraes e Dino defendem a punição pelos danos materiais e deterioração de patrimônio tombado, com soma de penas.
  • Fux entende que o crime de dano qualificado só é aplicável se não estiver absorvido por delito mais grave. Assim, ele propõe a aplicação exclusiva da pena por deterioração do patrimônio tombado, prevista na Lei de Crimes Ambientais, evitando duplicidade penal.

Além disso, Fux destacou que não é possível responsabilizar um réu pelos atos de terceiros, nem comprovar dolo dos réus diante das invasões.

Tentativa e atos preparatórios

Moraes e Dino consideram que os atos já constituem tentativa consumada.

Fux discorda, aplicando o princípio jurídico de que a tentativa exige consciência e vontade contemporânea do crime:

“A tentativa demanda um ataque direto, efetivo e imediato ao bem jurídico protegido. Na dúvida sobre a caracterização, o julgador deve decidir em favor do réu, negando a existência da tentativa.”

Para ele, atos que ainda não atingiram o bem jurídico protegido não configuram execução de crime, afastando a tipificação de tentativa.

Votos sobre cada réu

As posições de Fux em relação aos réus foram as seguintes:

  • Condenados:
    • Mauro Cid (tenente-coronel, ex-ajudante de ordens) – crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
    • Walter Braga Netto (general da reserva e ex-ministro da Defesa) – mesmo crime.
  • Absolvidos:
    • Jair Bolsonaro – todas as acusações.
    • Almir Garnier – todas as acusações.
    • Alexandre Ramagem – todas as acusações; Fux propôs suspensão integral da ação penal, por entender que o crime de organização criminosa tem caráter permanente.
    • Paulo Sérgio Nogueira – todas as acusações.
    • Augusto Heleno – todas as acusações.

Conclusão: divergências e implicações

O voto de Fux evidencia uma divisão interna no STF entre dois entendimentos:

  1. Moraes e Dino: adotam uma visão mais ampla, em que atos políticos e administrativos ligados a Bolsonaro e aliados constituem um plano articulado de golpe, com condenações robustas para todos os réus.
  2. Fux: aplica uma visão estritamente legalista e técnica, limitando condenações à comprovação efetiva de dolo e execução de crimes, garantindo proteção ao princípio de ampla defesa.

Essa divergência terá impacto direto nas decisões dos ministros Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, podendo alterar o placar final do julgamento. Além disso, abre precedentes sobre o alcance do STF em casos de crimes contra a democracia e os limites do Direito Penal em processos de grande repercussão política.

Placares parciais por réu (até o voto de Fux)

RéuVoto de MoraesVoto de DinoVoto de FuxPlacar Parcial
Jair BolsonaroCondenaçãoCondenaçãoAbsolvição2×1 pela condenação
Mauro CidCondenaçãoCondenaçãoCondenação3×0 pela condenação
Walter Braga NettoCondenaçãoCondenaçãoCondenação3×0 pela condenação
Anderson TorresCondenaçãoCondenaçãoAbsolvição2×1 pela condenação
Almir GarnierCondenaçãoCondenaçãoAbsolvição2×1 pela condenação
Paulo Sérgio NogueiraCondenaçãoCondenaçãoAbsolvição2×1 pela condenação
Augusto HelenoCondenaçãoCondenaçãoAbsolvição2×1 pela condenação
Alexandre RamagemCondenaçãoCondenaçãoAbsolvição2×1 pela condenação

Autor

  • Nicolas Pedrosa

    Jornalista formado pela UNIP, com experiência em TV, rádio, podcasts e assessoria de imprensa, especialmente na área da saúde. Atuou na Prefeitura de São Vicente durante a pandemia e atualmente gerencia a comunicação da Caixa de Saúde e Pecúlio de São Vicente. Apaixonado por leitura e escrita, desenvolvo livros que abordam temas sociais e histórias de superação, unindo técnica e sensibilidade narrativa.

Marcado:

Deixe um Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *