O julgamento da chamada trama golpista chegou ao seu quarto dia nesta quarta-feira (10) no Supremo Tribunal Federal (STF) e ganhou contornos mais imprevisíveis. O ministro Luiz Fux, integrante da Primeira Turma, apresentou um voto longo, técnico e divergente ao absolver o ex-presidente Jair Bolsonaro de todas as acusações feitas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), abrindo fissuras significativas no colegiado e mostrando diferentes concepções sobre o papel da Justiça em casos de repercussão política e institucional.
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Até o momento, o placar parcial é de 2 a 1 pela condenação do ex-presidente, uma vez que o relator, Alexandre de Moraes, e o ministro Flávio Dino já haviam votado pela condenação. A definição final dependerá agora dos votos da ministra Cármen Lúcia e do ministro Cristiano Zanin, previstos para quinta-feira (11). Mais do que o destino jurídico de Bolsonaro, o julgamento expõe diferenças internas sobre o que configura uma tentativa de golpe de Estado e até onde se estendem os limites da responsabilidade penal.
Veja o índice de cada ponto:
Um voto marcado pela defesa das garantias e da cautela judicial
O voto de Fux se destacou pelo tom garantista e pelo esforço em delimitar os limites da atuação penal do STF. Logo na introdução, o ministro ressaltou que o papel do juiz não é o de um ator político, mas sim o de “controlador da regularidade da ação penal”, defendendo que o Direito Penal deve ser aplicado com cautela, sob pena de transformar acusações em instrumentos de exceção.
“Condenar exige certeza; absolver requer humildade quando há dúvida.”
Essa premissa guiou todo o voto, servindo de fio condutor para o afastamento das imputações contra Bolsonaro. Para Fux, críticas às urnas eletrônicas, ainda que persistentes e muitas vezes infundadas, não configuram crime contra o regime democrático. Quanto à chamada “minuta do golpe”, encontrada na residência do ex-ministro Anderson Torres, o ministro descreveu-a como uma “mera cogitação sem efeito prático”.

Fux destacou que não houve prova concreta de que Bolsonaro tenha ordenado, incentivado ou tolerado juridicamente os atos de depredação de 8 de janeiro. Em contraste com Moraes e Dino, que apontaram um plano centralizado e sofisticado para desestabilizar o regime, Fux descreveu um cenário mais difuso, em que a ligação entre o ex-presidente e os atos seria indireta e insuficiente para embasar condenação.
Condenações pontuais e absolvições amplas: o placar parcial
Embora tenha absolvido Bolsonaro, Fux não isentou todos os réus. Ele votou pela condenação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência, e de Walter Braga Netto, general da reserva e ex-ministro da Defesa, ambos pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
“Imponho a conclusão de que o réu Mauro César Barbosa Cid deve ser responsabilizado criminalmente pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.”
Para os demais réus — Anderson Torres, Almir Garnier, Paulo Sérgio Nogueira, Augusto Heleno e Alexandre Ramagem —, Fux defendeu a absolvição total, citando a ausência de provas individualizadas. No caso de Ramagem, deputado federal e ex-diretor da Abin, o ministro chegou a sugerir a suspensão integral da ação penal, argumentando que não se pode fracionar um crime de organização criminosa, que teria caráter permanente.
“Estamos diante de um único crime que se prorrogou no tempo. Seja no momento anterior ou posterior do réu Alexandre Ramagem. Por essa razão voto pela extensão dos efeitos da decisão para suspender a ação penal em relação a esse réu.”
A decisão de absolver militares de alta patente como Garnier, Nogueira e Heleno tem peso simbólico. Enquanto Moraes e Dino sustentaram que eles teriam se alinhado a um projeto golpista, Fux considerou que a PGR não demonstrou participação ativa comprovada, limitando-se a suspeitas ou vínculos políticos.
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Organização criminosa: rejeição categórica à tipificação
Um dos pontos mais relevantes do voto foi a rejeição ao enquadramento de organização criminosa. Segundo a PGR, Bolsonaro e aliados teriam formado uma estrutura organizada para atacar instituições democráticas. Fux refutou a tese:
- Não houve estabilidade ou permanência na atuação do grupo;
- Não foi demonstrada divisão de tarefas ou prática reiterada de delitos visando vantagem;
- Reuniões de agentes não configuram quadrilha; são, na sua análise, um “concurso eventual de pessoas”.
“Voto que se julgue improcedente a ação penal relativamente ao crime de organização criminosa, porque esse crime não preenche a tipicidade prevista em lei.”
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Fux resgatou o precedente do Mensalão, lembrando que a Corte já absolveu réus da formação de quadrilha por ausência de vínculo estável, reforçando a necessidade de coerência jurisprudencial.

Golpe de Estado versus abolição do regime: distinção essencial
Outro eixo do voto foi a diferenciação entre golpe de Estado e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. Moraes e Dino sustentaram que ambos ocorreram simultaneamente, como faces de uma mesma tentativa golpista. Fux, por outro lado, argumentou que:
- Os tipos penais se sobrepõem, e um pode absorver o outro;
- Não houve deposição concreta de governo eleito;
- A tentativa configurou, no máximo, manifestações populares desorganizadas, ainda que com vandalismo.
“Sem dúvidas, o autogolpe tentado pode configurar o delito previsto no artigo 359-L. Jamais, porém, poderia ser cogitada a incidência do artigo 359-M pela ausência de deposição de um governo legitimamente constituído.”
Fux citou manifestações históricas, como ações de black blocs em 2013 e 2014, que causaram depredações, mas não foram tratadas como tentativa de golpe.
Danos ao patrimônio e princípio da subsidiariedade
O ministro afastou também a acusação de dano qualificado e deterioração de patrimônio público, aplicando o princípio da subsidiariedade: crimes menores devem ser absorvidos por crimes mais graves, quando relacionados ao mesmo contexto.
“O princípio da subsidiariedade impõe que o crime de dano qualificado não seja acumulado com a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado.”
Fux ressaltou a importância de individualizar condutas, observando que desconhecimento sobre atos de vandalismo inviabiliza a responsabilização penal coletiva.
Incompetência do STF para julgar o caso
Fux adotou um posicionamento ousado, declarando incompetência absoluta do STF, por ausência de prerrogativa de foro dos réus. Argumentou que:
- A ação penal deveria tramitar na primeira instância;
- Caso mantida, deveria ocorrer no plenário, e não na Primeira Turma;
- Atos decisórios até então estariam potencialmente contaminados por nulidade.
Essa linha abre caminho para recursos futuros, caso haja condenação, e reforça a divergência sobre competência dentro do Supremo.
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Cerceamento de defesa e o “document dumping”
Fux acolheu a preliminar de cerceamento de defesa, destacando a sobrecarga de provas:
- Foram entregues 70 terabytes de documentos, equivalentes a 30 bilhões de páginas;
- Prazo para análise absolutamente insuficiente;
- Classificou como “document dumping”, prática que inviabiliza a defesa.
“O excesso de documentação comprometeu a regularidade do processo desde o recebimento da denúncia.”
A delação de Mauro Cid
Apesar de crítico, Fux manteve a validade da delação premiada de Mauro Cid, considerando que o ex-ajudante de ordens:
- Prestou informações relevantes de forma consciente, acompanhado de advogado;
- Autoincriminou-se voluntariamente;
- Sua colaboração foi essencial para o andamento da investigação.

Divergência aberta no STF
O voto de Fux evidencia tensões internas:
- Moraes e Dino veem plano articulado de subversão;
- Fux defende limites estritos do Direito Penal;
- Diferença reflete debate sobre papel do STF em crises institucionais: mais punitivo para proteger a democracia ou mais cauteloso para evitar condenações sem provas robustas.
Placar, por réu, do voto de Luiz Fux
Réu | Crime de organização criminosa | Tentativa de abolição do Estado | Observações |
---|---|---|---|
Jair Bolsonaro | Absolvido | Absolvido | Falta de prova de ordenação ou incentivo |
Mauro Cid | Absolvido | Condenado | Participação comprovada; delação mantida |
Walter Braga Netto | Absolvido | Condenado | General da reserva; papel ativo confirmado |
Anderson Torres | Absolvido | Absolvido | Ausência de provas individualizadas |
Almir Garnier | Absolvido | Absolvido | Insuficiência probatória |
Paulo Sérgio Nogueira | Absolvido | Absolvido | Insuficiência probatória |
Augusto Heleno | Absolvido | Absolvido | Insuficiência probatória |
Alexandre Ramagem | Absolvido / ação suspensa | Absolvido / ação suspensa | Crime considerado contínuo; suspensão total proposta por Fux |
Resumo do voto de Fux:
- Absolvição ampla de réus civis e militares, inclusive Bolsonaro;
- Condenações pontuais de Mauro Cid e Braga Netto;
- Defesa das garantias processuais, da individualização das condutas e do princípio da subsidiariedade;
- Rejeição categórica da organização criminosa;
- Questionamento da competência do STF;
- Validação da delação de Cid como prova relevante; e
- Precedentes históricos e jurisprudenciais usados para reforçar coerência e proporcionalidade.
Placares parciais por réu (até o voto de Fux)
Réu | Voto de Moraes | Voto de Dino | Voto de Fux | Placar Parcial |
---|---|---|---|---|
Jair Bolsonaro | Condenação | Condenação | Absolvição | 2×1 pela condenação |
Mauro Cid | Condenação | Condenação | Condenação | 3×0 pela condenação |
Walter Braga Netto | Condenação | Condenação | Condenação | 3×0 pela condenação |
Anderson Torres | Condenação | Condenação | Absolvição | 2×1 pela condenação |
Almir Garnier | Condenação | Condenação | Absolvição | 2×1 pela condenação |
Paulo Sérgio Nogueira | Condenação | Condenação | Absolvição | 2×1 pela condenação |
Augusto Heleno | Condenação | Condenação | Absolvição | 2×1 pela condenação |
Alexandre Ramagem | Condenação | Condenação | Absolvição | 2×1 pela condenação |