“It: Bem-Vindos a Derry” nasce de uma ambição clara: expandir o universo de It – A Coisa sem se limitar ao fetiche do palhaço assassino. Ao optar por uma estrutura episódica ambientada décadas antes dos eventos centrais da obra de Stephen King, a série se propõe a algo mais arriscado, investigar como Derry, enquanto organismo social, se tornou terreno fértil para o medo, a violência e o esquecimento. O resultado, no entanto, é uma obra irregular, que oscila entre momentos de brilho genuíno e escolhas criativas que revelam insegurança narrativa.
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Desde o episódio inaugural, fica evidente que Bem-Vindos a Derry não quer ser apenas uma história de sustos. A série aposta na ideia de que o medo não nasce do sobrenatural, mas é apenas amplificado por ele. Racismo estrutural, violência institucional, paranoia coletiva e intolerância são apresentados como elementos tão, ou mais, assustadores do que a própria Coisa. Essa abordagem, conceitualmente forte, nem sempre encontra execução à altura. Nos primeiros episódios, muitos acontecimentos funcionam mais como dispositivos de roteiro para empurrar a trama adiante do que como desdobramentos orgânicos de personagens bem construídos, o que compromete parte do impacto emocional.
A sensação de que a série “anda de lado” durante boa parte da temporada é recorrente. Os episódios iniciais se apoiam excessivamente em referências aos filmes de Andy Muschietti e em acenos diretos ao fã, criando a impressão de um produto que, antes de contar sua própria história, precisa reafirmar o tempo todo sua conexão com o material já conhecido. Em alguns momentos, Bem-Vindos a Derry parece mais preocupada em existir como peça de um universo expandido do que em se sustentar como narrativa autônoma.

Tecnicamente, essa insegurança também se manifesta. O CGI dos primeiros capítulos é irregular e, por vezes, prejudica a ambientação cuidadosamente construída dos anos 1960. As criaturas digitais surgem cedo demais, em excesso, e sem o tempo necessário para gerar tensão. A série parece confundir impacto visual com horror, repetindo um erro semelhante ao de It: Capítulo Dois. Felizmente, há uma evolução perceptível: à medida que a temporada avança, os efeitos visuais se tornam mais consistentes e melhor integrados à narrativa, culminando em transfigurações grotescas e perturbadoras que finalmente honram a natureza da Coisa.
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É a partir da metade da temporada que Bem-Vindos a Derry começa, de fato, a encontrar seu eixo. Episódios como “A Coisa na Escuridão”, “O Grande Aparato Giratório do Funcionamento do Nosso Planeta” e, especialmente, o arco que envolve o Black Spot, revelam o potencial da série quando ela decide fundir horror sobrenatural e horror humano. O massacre, tratado como consequência direta do ódio racial, funciona como o momento mais forte de toda a temporada justamente por mostrar que Pennywise não cria o mal, ele apenas se alimenta dele.

Nesse ponto, a série acerta ao não transformar o Black Spot em um simples espetáculo de destruição. Ainda que o uso do sobrenatural divida espaço com o drama humano, o episódio deixa claro que o verdadeiro terror está nos homens comuns, nos linchadores, nas instituições que escolhem a violência como resposta. É nesse equilíbrio instável que Bem-Vindos a Derry chega mais perto da essência de Stephen King.
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O maior acerto da temporada, contudo, atende pelo nome de Dick Hallorann. A decisão de expandir sua história não apenas se justifica, como se torna o coração emocional, moral e místico da série. Chris Chalk entrega uma performance hipnótica, carregada de trauma, humanidade e ambiguidade. Sua “iluminação” não é tratada como dom conveniente, mas como fardo psicológico, algo que o fragmenta aos poucos. Hallorann se torna o fio condutor entre passado e futuro, conectando Bem-Vindos a Derry não apenas a It, mas também a O Iluminado, enriquecendo retroativamente todo o universo.

Outro destaque relevante é Ingrid/Periwinkle, cuja trajetória adiciona camadas incômodas à mitologia da Coisa. Sua obsessão pelo pai, Bob Gray, e a maneira como ela racionaliza o horror que ajuda a perpetrar transformam a personagem em um reflexo perturbador de como o mal pode ser normalizado. Quando sua ilusão finalmente se rompe, o impacto não vem do susto, mas do reconhecimento tardio da monstruosidade que ela mesma alimentou.
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E, claro, há Bill Skarsgård. Seu Pennywise é utilizado com parcimônia, e essa escolha se mostra acertada. Mesmo ausente, o personagem é constantemente sentido, nos silêncios, nas escolhas, nos medos dos habitantes de Derry. Quando surge, não é apenas como monstro, mas como força da natureza, algo inevitável. Skarsgård eleva o material sempre que aparece, reforçando que Pennywise não é um vilão episódico, mas uma presença ancestral.











Ainda assim, Bem-Vindos a Derry nunca se livra completamente de seus problemas estruturais. O excesso de explicações, o didatismo em alguns diálogos e a insistência em justificar tudo enfraquecem o mistério. Em diversos momentos, a série parece ter medo de confiar no espectador, optando por verbalizar temas que seriam muito mais eficazes se deixados nas entrelinhas. A tentativa de equilibrar crítica social, horror cósmico e narrativa de franquia nem sempre encontra o tom certo.
Ao final, It: Bem-Vindos a Derry se consolida como uma série de extremos. É visceral e corajosa, ao não poupar personagens carismáticos ou crianças, e ao rejeitar finais confortáveis. É envolvente em atmosfera, rica em referências e respeitosa com o cânone de Stephen King. Ao mesmo tempo, é irregular, insegura e, por vezes, excessivamente dependente de convenções de franquia.
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Se tivesse confiado mais em seus personagens, especialmente em figuras como Hallorann e Charlotte, e menos em fogos de artifício digitais, poderia ter alcançado algo realmente histórico. Do jeito que está, é um excelente horror televisivo, cheio de arranhões, mas também de identidade. Um retrato imperfeito, porém potente, de uma cidade que não apenas convive com o mal: ela o cultiva.
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MAS, E A NOTA?
IT: Bem-Vindos a Derry se constrói como uma experiência de terror menos interessada em sustos imediatos e mais focada na erosão moral de uma cidade. Ao longo de seus episódios, a série revela Derry como um organismo doente, onde o medo não nasce do sobrenatural, mas encontra nele um amplificador perfeito. Pennywise existe, devora e manipula, mas só prospera porque encontra um terreno fértil: racismo estrutural, violência institucional, silêncio cúmplice e traumas transmitidos como herança.
A temporada começa de forma vacilante, excessivamente dependente de referências aos filmes e de efeitos visuais nem sempre bem integrados, o que compromete parte da imersão inicial. No entanto, à medida que os episódios avançam, a narrativa ganha densidade e clareza temática. O horror passa a emergir menos das criaturas digitais e mais das escolhas humanas, linchamentos, perseguições, conivência social e a normalização da brutalidade. O arco do Black Spot sintetiza essa proposta ao expor que, em Derry, o verdadeiro monstro é coletivo.
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Narrativamente, a série oscila entre inspiração e insegurança. Alguns personagens funcionam mais como engrenagens do enredo do que como figuras plenamente desenvolvidas, enquanto outros, especialmente Dick Hallorann, elevam o material a um patamar superior. A expansão de Hallorann é o maior acerto da produção: sua “iluminação” é tratada como trauma, não como conveniência, e sua jornada confere peso emocional, místico e ético à temporada. Pennywise, por sua vez, é usado com inteligência: sua presença é contida, mas esmagadora, reafirmando-o como força ancestral, não como vilão episódico.

Tecnicamente, Bem-Vindos a Derry cresce visivelmente. O CGI irregular dos primeiros episódios dá lugar a imagens mais orgânicas e perturbadoras, capazes de sustentar o grotesco sem romper totalmente a atmosfera. Ainda assim, o excesso de explicações e o didatismo em momentos-chave revelam uma série que, por vezes, não confia plenamente no próprio espectador.
Ao final, mesmo consciente de como tudo termina, a série se sustenta como uma peça intermediária madura dentro do universo It. Não é uma obra definitiva, tampouco irrepreensível, mas é corajosa, cruel quando precisa ser e tematicamente consistente em sua mensagem central: o mal não surge do nada, ele é cultivado, protegido e repetido.
NOTA: 8,5/10 – IT: Bem-Vindos a Derry é um horror ambicioso e imperfeito, que tropeça na forma, mas acerta no conteúdo. Quando abandona o espetáculo vazio e mergulha no medo humano, entrega seus melhores momentos. Não é a série mais assustadora do ano, mas é uma das mais incômodas, e isso, em Derry, é exatamente o ponto.

- Título: It: Bem-Vindos a Derry
- País: EUA
- Estreia: 26 de outubro de 2025
- Desenvolvimento: Andy Muschietti, Barbara Muschietti, Jason Fuchs
- Showrunners: Jason Fuchs, Brad Caleb Kane
- Direção: Andy Muschietti
- Roteiro: Jason Fuchs
- Elenco: Taylour Paige, Jovan Adepo, James Remar, Stephen Rider, Matilda Lawler, Amanda Christine, Clara Stack, Miles Ekhardt, Mikkal Karim-Fidler, Jack Molloy Legault, Matilda Legault
- Duração: 54/70 minutos por episódio









