Em depoimento prestado nesta segunda-feira (9) ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, revelou com riqueza de detalhes os bastidores da tentativa de golpe de Estado arquitetada no entorno do ex-presidente da República. O militar apontou nomes, documentos, recursos financeiros ilícitos e até uma suposta operação de espionagem para monitorar autoridades públicas, incluindo o próprio Moraes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente Geraldo Alckmin.
LEIA TAMBÉM: Governo brasileiro exige libertação de ativistas detidos por Israel
Cid foi direto ao relatar um dos episódios mais simbólicos:
“Recebi dinheiro do general Braga Netto no Palácio da Alvorada, em caixa de vinho. Provavelmente, era dinheiro vindo do pessoal do agro.”
A afirmação, feita sob juramento em sessão conduzida por Moraes, escancarou uma rede de financiamento informal — e possivelmente ilegal — destinada a sustentar a articulação golpista. O dinheiro, segundo o militar, seria oriundo de empresários do agronegócio favoráveis à permanência de Bolsonaro no poder.
O envolvimento direto de Bolsonaro na minuta golpista
Um dos trechos mais sensíveis do interrogatório tratou da minuta do golpe, documento que propunha a decretação de estado de sítio, a intervenção nas eleições e a prisão de ministros do STF. Mauro Cid foi taxativo ao apontar a participação do próprio Bolsonaro na edição da proposta.
“A minuta foi feita pelo Filipe Martins [ex-assessor de assuntos internacionais da Presidência]. Ele apresentou ao presidente, que não só leu, como editou. Tirou alguns nomes, manteve o de Alexandre de Moraes.”
O ex-presidente, ainda de acordo com Cid, teria considerado que prender mais de um ministro do STF seria excessivo e poderia gerar maior resistência institucional. A decisão de manter apenas Moraes na lista de detidos era uma tentativa de conter danos e focar o ataque ao que considerava seu principal adversário no Judiciário.
Moraes endurece: “É sua última chance de falar a verdade”
Durante o depoimento, o ministro Alexandre de Moraes foi enérgico ao interpelar Cid. Em tom firme, advertiu o militar sobre a gravidade de possíveis omissões ou mentiras no processo de colaboração:
“O senhor já mentiu anteriormente. Essa é sua última oportunidade. Se voltar a mentir, eu revogo o acordo agora mesmo.”
Moraes também deixou claro o objetivo da investigação:
“Não se trata apenas do senhor. Trata-se de identificar quem financiou, quem planejou e quem tentou executar um atentado à democracia.”
Operação “Punhal Verde e Amarelo”: espionagem paralela contra o Estado
Outro ponto importante do depoimento de Mauro Cid ao STF envolveu a chamada “Operação Punhal Verde e Amarelo”, que, segundo ele, era uma espécie de ação clandestina coordenada por oficiais da ativa e da reserva para monitorar ilegalmente autoridades públicas.
“O major Rafael Martins de Oliveira participou das reuniões. O objetivo era acompanhar os passos do ministro Alexandre de Moraes, do presidente Lula e de outros integrantes do governo.”
A operação incluía reuniões estratégicas e teria utilizado estruturas militares ou paramilitares para obter informações sensíveis, contrariando diretamente a legalidade e a separação entre as Forças Armadas e a política.
Pressão sobre os comandos militares: a ideia de trocar generais
Segundo Cid, a cúpula bolsonarista cogitava substituir os comandantes das Forças Armadas que se recusassem a aderir à ideia de ruptura institucional. O general Freire Gomes, então comandante do Exército, era visto como obstáculo ao plano golpista.
“Uma das alternativas ventiladas era trocar o comando. A expectativa era que o novo comandante tomasse medidas mais duras, como assinar a decretação do estado de sítio.”
A tentativa de instrumentalizar o Exército evidencia o esforço de parte do núcleo político em usar as Forças Armadas como ferramenta de poder pessoal, em desrespeito à Constituição.
A força-tarefa do agro e o caixa de vinho
O trecho mais simbólico — e chocante — do depoimento tratou do financiamento à estrutura golpista. Segundo Cid, empresários do setor agropecuário teriam repassado recursos em espécie à campanha de desestabilização democrática.
“Esse dinheiro nunca passou por conta bancária. Era tudo em espécie. Uma vez, recebi uma caixa de vinho recheada de dinheiro. Quem entregou foi o general Braga Netto, dentro do Palácio da Alvorada.”
LEIA TAMBÉM: Polarização, violência e legado: o impacto do atentado contra Miguel Uribe
Essa fala vincula diretamente o ex-ministro da Defesa — e candidato a vice de Bolsonaro em 2022 — a um esquema de financiamento oculto, possivelmente destinado à compra de apoio, logística e segurança para as ações do grupo.
Em depoimento ao STF, Mauro Cid afirmou que o almirante Almir Garnier integrava “um dos grupos mais radicais” envolvidos na trama golpista, enquanto classificou os generais Braga Netto e Paulo Sérgio como figuras de postura “mais moderada”.
O papel de Bolsonaro e Braga Netto: da cúpula à ação
Mauro Cid não poupou nomes. Revelou que o general Braga Netto, candidato a vice de Bolsonaro em 2022, entregou pessoalmente valores em espécie, e que o próprio Bolsonaro sabia, aprovava e incentivava os passos da operação.

“Tudo era relatado ao presidente. Ele queria saber o andamento da operação. Estava envolvido desde o início.”
“Encontrar fraude nas urnas sempre foi a grande preocupação de Bolsonaro”
Em um trecho crucial, Cid revelou que a principal motivação do ex-presidente era validar uma narrativa de fraude eleitoral para sustentar a ruptura institucional:
“Encontrar fraude nas urnas sempre foi a grande preocupação de Bolsonaro. Ele tinha certeza que encontraria alguma coisa… era essa a convicção dele.”
LEIA TAMBÉM: Câmara dos deputados cumprirá decisão do STF e declarará perda do mandato de Zambelli
Ainda segundo Cid, Bolsonaro pressionava diretamente o Ministério da Defesa para que o relatório técnico sobre as urnas incluísse sugestões de fraude:
“O presidente queria que escrevesse que tivesse fraude… acabou sendo um meio termo entre o que o presidente queria e o que o general Paulo Sérgio fez.”
A construção do golpe e a narrativa do clamor popular
O plano envolvia usar a alegação de fraude para gerar comoção popular, o que justificaria a decretação de um estado de exceção:
“A expectativa era que houvesse uma comoção popular para que fosse possível executar o decreto de intervenção.”
O movimento, portanto, não seria executado de forma repentina. Exigia, na visão dos articuladores, preparo narrativo, apoio popular e controle institucional — o que, segundo Cid, não se consolidou por completo.
O cerco se fecha
O depoimento de Mauro Cid pode se tornar um divisor de águas nas investigações conduzidas pelo STF e pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Ao detalhar o papel de Bolsonaro, de seus assessores, de oficiais militares e de empresários, Cid estabelece uma cadeia de responsabilidades que vai do financiamento ao planejamento e à execução de uma tentativa concreta de golpe de Estado.
Agora, a PGR deve analisar os elementos apresentados para decidir se mantém o acordo de colaboração premiada ou se avança com denúncias formais contra os envolvidos. O STF, por sua vez, já sinaliza que novas diligências e oitivas estão em curso.
Uma trama em camadas
O que se desenha até aqui, a partir do depoimento de Cid, é uma trama articulada, que envolveu diferentes atores da máquina pública, do setor privado e da caserna. Uma tentativa não apenas de contestar o resultado eleitoral, mas de anular o sistema democrático por dentro, com uso da máquina do Estado e de estruturas paralelas.
O Brasil agora aguarda os próximos capítulos. A depender das provas que forem colhidas, pode-se estar diante do maior escândalo político-militar desde a redemocratização.
Quem são os réus no caso do golpe de 2022?
O processo judicial envolve oito acusados apontados como o “núcleo crucial” da tentativa de golpe de Estado ocorrida em 2022, catalogados na ordem em que vao depor:
- Mauro Cid – ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro e atual delator do caso.
- Alexandre Ramagem – deputado federal e ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
- Almir Garnier – ex-comandante da Marinha.
- Anderson Torres – ex-ministro da Justiça.
- Augusto Heleno – ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
- Jair Bolsonaro – ex-presidente da República.
- Paulo Sérgio Nogueira – ex-ministro da Defesa.
- Walter Braga Netto – ex-ministro e ex-candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro.
Quando Jair Bolsonaro será ouvido?
O depoimento do ex-presidente Jair Bolsonaro está previsto para ocorrer entre quarta e quinta-feira, conforme o andamento dos interrogatórios.
A sequência dos depoimentos segue a seguinte ordem:
- Primeiro, o delator Mauro Cid.
- Em seguida, os demais réus serão ouvidos em ordem alfabética.
Dessa forma, Bolsonaro deve ser o sexto réu a prestar depoimento.
Como serão realizados os depoimentos?
As oitivas dos réus acontecem presencialmente na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), sob a condução do ministro relator Alexandre de Moraes.
A exceção é o general Walter Braga Netto, que está preso no Rio de Janeiro e participará do interrogatório por videoconferência.