Pejotização: um problema disfarçado de solução para o mercado de trabalho

A pejotização tem ganhado força nos últimos anos como um modelo alternativo de contratação. Apresentada por muitos como uma “solução moderna” para reduzir custos e flexibilizar vínculos empregatícios, a prática esconde, na verdade, um grave problema: a precarização das relações de trabalho e a fragilização de direitos historicamente conquistados pela classe trabalhadora.

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No papel, a pejotização consiste na substituição do vínculo formal (regido pela CLT) por contratos com pessoas jurídicas — ou seja, o trabalhador é obrigado a abrir uma empresa (geralmente um MEI) para prestar serviços a apenas um contratante. Isso transfere ao profissional toda a responsabilidade tributária, trabalhista e previdenciária, enquanto a empresa contratante se exime de obrigações como férias, 13º salário, FGTS, INSS e outros encargos.

A ilusão da liberdade

Defensores da pejotização argumentam que o modelo oferece mais autonomia ao trabalhador e permite negociações diretas entre as partes. Mas o que se vê, na prática, é o contrário: o profissional “pejotizado” continua cumprindo jornada fixa, recebendo ordens diretas e sendo supervisionado como qualquer funcionário — porém, sem as proteções legais garantidas a um empregado formal.

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Esse falso empreendedorismo mascara uma relação de subordinação, gerando um desequilíbrio de forças que favorece apenas o contratante. Não há negociação real quando a alternativa ao contrato PJ é o desemprego, isso gera um novo problema!

Decisão do STF sobre a Pejotização: Suspensão Nacional e Repercussão Geral

Em 14 de abril de 2025, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão de todos os processos em curso no país que tratam da licitude da contratação de pessoas físicas por meio de empresas (pessoas jurídicas) para prestação de serviços — prática amplamente conhecida como “pejotização”. A decisão foi tomada após o Plenário da Corte reconhecer, por maioria, a repercussão geral do tema no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1532603, classificado como Tema 1389.

A medida atinge diversas categorias profissionais, incluindo representantes comerciais, advogados associados, profissionais da saúde, entregadores por aplicativos, corretores de imóveis, artistas e trabalhadores da área de tecnologia. Segundo Gilmar Mendes, a Justiça do Trabalho vem descumprindo sistematicamente decisões já consolidadas pelo STF, o que teria provocado insegurança jurídica e elevado o volume de reclamações constitucionais à Suprema Corte.

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O ministro defendeu que a matéria seja tratada de maneira ampla, abrangendo todos os tipos de contratos civis e comerciais, e ressaltou que o mérito do recurso, quando julgado, terá efeito vinculante e deverá ser seguido por todos os tribunais brasileiros. A suspensão permanece válida até o julgamento definitivo da questão pelo Plenário do STF.

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Retrocesso Disfarçado de Uniformização Jurídica

Embora revestida de um discurso técnico sobre segurança jurídica e uniformização de jurisprudência, a decisão do STF de suspender nacionalmente os processos envolvendo pejotização soa, na prática, como um perigoso retrocesso na defesa dos direitos trabalhistas. Ao interromper o andamento de milhares de ações que buscam o reconhecimento de vínculos empregatícios em situações de subordinação evidente, o Supremo silencia temporariamente as vozes de trabalhadores que veem seus direitos sendo sistematicamente burlados.

A pejotização, embora travestida de modernização das relações de trabalho, tem sido frequentemente usada como instrumento de precarização, com empresas se eximindo de responsabilidades legais e fiscais sob o argumento de contratos civis. A decisão do STF, ao tolher a atuação da Justiça do Trabalho — historicamente sensível à proteção da parte hipossuficiente — enfraquece os mecanismos de reparação e abre espaço para a consolidação de um modelo que transfere todo o risco da atividade econômica ao trabalhador. É legítimo buscar segurança jurídica, mas não às custas do enfraquecimento das garantias sociais e do apagamento de abusos travestidos de liberdade contratual.

Precarização e insegurança

A pejotização também traz consequências severas para a segurança econômica e social dos trabalhadores. Sem vínculo formal, esses profissionais ficam desprotegidos em casos de doença, acidentes de trabalho, gravidez ou aposentadoria. A contribuição ao INSS, por exemplo, torna-se uma decisão individual, frequentemente ignorada por quem precisa manter a renda imediata. Afinal, somos um país que não investe na educação financeira de nossas crianças.

Além disso, em um cenário de crise ou desaceleração econômica, o trabalhador PJ é o primeiro a ser dispensado — sem aviso prévio, sem rescisão, sem qualquer rede de apoio.

Um retrocesso disfarçado de inovação

Pouca gente sabe, mas a tão criticada CLT, sancionada em 1943 por Getúlio Vargas, foi fortemente inspirada na Carta del Lavoro, documento elaborado em 1929 sob regimes autoritários na Europa, como os de Benito Mussolini, com aderência de Adolf Hitler. Criada para controlar as relações nas indústrias da época, essa base legislativa foi adaptada ao Brasil em um período de centralização do poder e permanece, com poucas atualizações, como a espinha dorsal do nosso sistema trabalhista.

É verdade que, ao longo do tempo, a CLT passou por reformas e ganhou corpo, evolução e certo grau de modernização. Atualmente, diversos países desenvolvidos adotam modelos parecidos, com foco na proteção de direitos trabalhistas, jornada de trabalho, férias e licenças. Noruega, Suécia, Finlândia e Espanha, por exemplo, mantêm legislações protetivas adaptadas à realidade contemporânea. Ainda assim, até mesmo esses países precisaram rever suas estruturas com o tempo, reconhecendo que leis devem evoluir junto com a sociedade e a economia.

No Brasil, porém, ao invés de promover uma reforma estrutural eficiente, o que ocorreu foi a adoção de um atalho: a pejotização. Apresentada como alternativa à rigidez da CLT, ela não solucionou os entraves da legislação — apenas transferiu o problema de forma ainda mais grave para o trabalhador.

Ao invés de modernizar o modelo, a pejotização institucionalizou um novo tipo de precarização. O profissional deixa de ter vínculo formal, perde garantias e ainda assume riscos tributários e previdenciários. E o que isso gerou? Um mercado repleto de insegurança jurídica, alta rotatividade e, mais recentemente, um apagão de mão de obra.

Muitos profissionais qualificados simplesmente abandonaram atividades em que não se viam mais protegidos nem valorizados. A ausência de direitos mínimos, somada à descontinuidade contratual, afastou bons profissionais de setores inteiros — especialmente na área de serviços e eventos. Hoje, é comum ouvir de empresários que “não se encontra mais gente para trabalhar”. A razão é clara: as pessoas não querem mais se submeter a um sistema frágil, instável e sem garantias. O problema da CLT não foi resolvido. Foi apenas maquiado por um modelo que transfere responsabilidades e desmonta as bases do pacto trabalhista.

O que vemos, na prática, é um mercado marcado por múltiplas camadas de intermediação — agências, “gatos”, maîtres, cooperativas, empresas de terceirização, quarteirização e até “quinterização” — o que faz a remuneração na ponta se diluir e perder valor. Um sistema que encarece os eventos, desorganiza cadeias produtivas e desfaz qualquer compromisso com ESG ou compliance.

É importante lembrar que o Brasil construiu, ao longo de décadas, uma série de proteções legais justamente para combater abusos históricos no mercado de trabalho. A pejotização, ao driblar essas normas, representa um verdadeiro retrocesso. Não se trata de inovação, mas de um falso remédio com efeitos colaterais graves — e entre eles está justamente a falta de mão de obra que hoje ameaça a produtividade de diversos setores.

O que deveria ser exceção virou regra

Há casos legítimos em que a contratação de pessoa jurídica faz sentido — como profissionais realmente autônomos, prestadores eventuais ou consultores com múltiplos clientes. No entanto, a prática se desvirtuou. Hoje, muitas empresas impõem o modelo PJ como condição para contratação, forçando trabalhadores a aceitar termos que não escolheriam voluntariamente.

A pejotização, quando generalizada, perverte o próprio espírito do empreendedorismo e cria uma massa de “empresários forçados”, que têm o CNPJ, mas não têm independência, nem segurança.

“O que nos leva a uma conclusão: o sistema de Pessoa Jurídica não é, no Brasil, uma solução.” É um problema grave que precisa ser enfrentado com seriedade pelo poder público, pelos sindicatos e pela sociedade. A luta por relações de trabalho mais flexíveis não pode significar o abandono das garantias mínimas de dignidade, segurança e justiça social.

Em vez de estimular esse modelo, o Brasil deveria investir em políticas que promovam a formalização, a qualificação profissional e a valorização do trabalho digno. Afinal, um país que desvaloriza o trabalhador está fadado ao subdesenvolvimento.

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