Como o governo de Belarus treina crianças para a guerra

São quatro da manhã. Sirenes tocam e tiros ecoam por toda a parte. Adolescentes de 13 ou 14 anos, em uniformes militares e armados com fuzis, saem correndo de tendas. Alguns revidam o fogo, enquanto outros, agachados, correm para socorrer os feridos, que também são crianças em idade escolar. Eles os enfaixam, colocam-nos em macas e tentam carregá-los para um local seguro sob fogo cruzado.

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Esse video pode ser encontrado na conta do Instagram dos “Patriotas de Belarus”. Os “Patriotas” foram fundados como uma organização social em dezembro de 2020, logo após a repressão aos protestos contra os resultados fraudulentos das eleiçoes presidenciais em Belarus. “Promover o respeito e o orgulho pelos simbolos nacionais da República de Belarus” e “preservar a soberania e a independência do Estado” são os objetivos declarados em seu site.

A boy aims a grenade launcher in a school classroom
Um garoto segura um lança granadas em uma sala de aula. Foto: Arquivo/Texty.org.ua

Eles também organizam o torneio militarista mostrado no video com o nome de “desafio”. Ao participarem de tais manobras, alunos do 9° e 10° ano de todo o pais vivenciam uma atmosfera semelhante à do meio militar.

Por meio de jogos de guerra, exercícios, visitas a unidades militares e cerimônias de juramento, o regime do homem forte Alexander Lukashenko aparentemente prepara crianças em idade escolar para um guerra “quente” ao lado da Rússia. Essa é a conclusão a que chegaram os autores do estudo Crianças Sem Futuro: A Militarização da infância em Belarus.

Protestos eclodem em Belarus após reeleição de Lukashenko
Manifestantes protestam após a eleição presidencial em Minsk, na Bielorrússia, em 2020./Foto: Associated PRess

Estratégia de sobrevivência do regime

A militarização de crianças em Belarus é, segundo o estudo, uma “estratégia de sobrevivência do regime”, O estudo foi produzido pela BelPol, uma associação de ex-funcionários da segurança, e pela Administração Popular Anticrise (NAU). Ambas as organizações foram fundadas por críticos de Lukashenko e operam no exílio.

Como explica Pavel Latushko, chefe da NAU, após os protestos de 2020 no país, iniciou-se em um “esforço sistemático para cultivar uma nova geração de cidadãos leais”. O pano de fundo disso é também a escassez de pessoal nas forças de segurança de Lukashenko, porque os jovens não querem mais trabalhar nos orgãos repressivos do Estado. Portanto, o regime decidiu “treinar especificamente as futuras forças de segurança”.

Em 2022, outro motivo tornou-se evidente: os preparativos da Belarus para uma possível guerra ao lado da Russia contra a Ucrânia. Uma parte significativa dessas medidas é a militarização de menores, que está consagrada, entre outras coisas, em um “Programa para a Educação Patriótica da População para 2022-2025” administrada pelo estado.

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Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko (E) aperta a mão do presidente da Rússia, Vladimir Putin, em Sochi, no dia 14 de setembro./Foto: HANDOUT / AFP

Os autores do estudo observam que mas da metade de todos os eventos escolares hoje está relacionada a temas como guerra, morte e autossacrifício. Alunos visitam regurlamente bases militares e agências de segurança, onde são apresentadas a armas e equipementosbélicos.

Jogos de Guerra

“Quero experimentar ser um soldado”; “Quero testar minha resistência”; “Quero vivenciar algo novo”, disseram adolescentes à TV do Ministério da Defesa de Belarus quando questionados sobre o motivo de participarem do torneio “Desafio”.

Mais de 35 mil estudantes participam desses jogos de guerra todos os anos. Crianças de 9 e 10 anos assumem os papéis de“pioneiros” e “médicos”. Adolescentes de 11 a 14 anos aprendem a atirar. Na etapa seguinte, em jogos com nomes como “Filhote de Águia”, alguns adolescentes chegam a participar de exercícios em que um tanque passa por cima de pessoas em trincheiras. O objetivo é ensinar os jovens a não terem medo de tiros, explosões e sangue, afirma Matvey Kupreychik, da BelPol.

Na reportagem da TV, as crianças parecem entusiasmadas. “No veículo blindado de transporte de pessoal tinha mais adrenalina; era mais rápido. Mas o tanque era muito mais emocionante. Que blindagem! Que tanque poderoso! Quero me tornar motorista de tanque na academia militar. Esse é o meu maior sonho”, afirma um garoto.

“O torneio ‘Desafio’ me fortaleceu mentalmente. Existem regras e ordens que você precisa seguir, quer queira ou não. Você pode aprender muito no torneio”, diz outro participante.

A girl from an orphanage holds a heavy rifle
Uma menina de um orfanato segura um rifle pesado./Foto: Divulgação: Arquivo/Texty.org.ua

Práticas soviéticas

Os jogos de guerra não são novidade em Belarus. Já eram comuns durante a era soviética. Outra tradição desse passado é o uso de instrutores militares que ensinam o básico do treinamento militar nas escolas. Essas funções foram reintroduzidos em todas as instituições de ensino de Belarus. A maioria desses instrutores militares são ex-membros das forças de segurança.

“A militarização é intensificada por uma doutrinação ideológica intensiva. Os livros didáticos são reescritos regularmente para se alinharem à agenda política daqueles que estão no poder. Administradores escolares e autoridades educacionais são obrigados a relatar sistemáticamente ao Ministério Público”, escrevem a BelPol e a NAU.

Drones redefinem o "período de ouro" no atendimento a soldados feridos na  Guerra da Ucrânia - Resgate e Transporte Aeromédico
Drone russo utilizado na guerra contra a Ucrânia carrega uma bomba./Foto: Alexander Reka/ITAR-TASS/IMAGO.

Até o momento, o ensino militar-patriótico foi introduzido em 220 escolas do país, frequentadas por aproximadamente 4 mil alunos. Outros 1,8 mil jovens matriculados em nove escolas de cadetes. Diversas instituições de ensino oferecem cursos de pilotos de drones. Nesses cursos, crianças e adolescentes entre 12 e 17 anos aprendem a operar drones FPV, projetados para destruir equipamentos e tropas inimigas. Durante as férias escolares, crianças e adolescentes são convidados para acampamentos militarizados. No ano letivo de 2023/2024, mais de 57 mil jovens participaram dessa atividade.

Os fundos para a militarização de crianças em idade escolar, oficialmente denominada “educação militar-patriótica”, provêm do orçamento estatal, de fundações e de doações voluntárias ou obrigatórias de organizações e empresas do país. Parte do financiamento é fornecida pelo Clube Esportivo Presidencial, chefiado por Dmitry Lukashenko, um dos filhos do líder do país.

“Militarização mina sistema educacional”

Kremlin interfere na educação básica para formar geração nacionalista e  militarizada
Cadetes russos da escola militar Suvorov participam da cerimônia no Museu da Grande Guerra Patriótica: militarização está se expandindo pelo sistema educacional./Foto: Moskva News Agency/AFP

“O Estado atinge seu objetivo de militarizar as crianças, em parte, dando, na admissão em universidades, tratamento preferencial a graduados de cursos militar-patrióticos e escolas militares, assim como a membros de associações militaristas”, diz Matvey Kupreychik, acrescentando que familias cujos filhos têm bons desempenho no treinamento militar também recebem incentivos financeiros.

“A militarização em massa está minando o sistema educacional e destruindo os valores do humanismo e do pensamento crítico. As crianças estão crescendo com uma visão de mundo distorcida, na qual a violência e a subjugação são a norma, e na qual um culto á personalidade se desenvolve e se consolida”, afirma Pavel Latushko.

Segundo os autores do estudo, o que está acontecendo hoje em Belarus viola as obrigações internacionais do país de proteger os direitos das crianças. Isso infringe a liberdade de opinião e crença, assim como a proteção das crianças contra a exploração, propaganda e a participação em hostilidades.

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Parada militar em Minsk durante pandemia de coronavírus, em 9 de maio de 2020./Foto: Vasily Fedosenko/Reuters

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