Quando o samba chora: a partida de Arlindo Cruz, poeta de Madureira, aos 66 anos

O Brasil se despede, nesta sexta-feira (08), de um de seus maiores expoentes do samba. Arlindo Cruz, cantor, compositor e instrumentista, morreu aos 66 anos, deixando um legado monumental para a música popular brasileira. Desde o acidente vascular cerebral (AVC) sofrido em 2017, o artista vivia longe dos palcos, mas nunca saiu do coração do povo. Sua partida provoca um silêncio profundo no universo do samba, mas também reverbera como um canto de gratidão pela arte que ele nos deixou.

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Nascido e criado em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, Arlindo foi cria do terreiro e do subúrbio. Foi forjado no quintal de casa, onde o pai, Arlindão, promovia rodas de samba embaladas por nomes como Candeia. Era ali, em meio ao batuque e ao suor da malandragem poética, que nascia um menino com um dom raro: o de transformar a vida em melodia. Como ele mesmo cantou, “O show tem que continuar”, mas não será o mesmo sem sua presença.

Arlindo Cruz no ‘Altas Horas’, da TV Globo – Foto: Reprodução/Carol Caminha/TV Globo

Arlindo começou tocando cavaquinho, aos 17 anos, e logo brilhou no disco “Roda de Samba”, de Candeia. Nos anos 1970, tornou-se um dos fundadores da roda de samba do Cacique de Ramos, onde compartilhou banjo, talento e poesia com lendas como Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Almir Guineto e Sombrinha. Foi ali que cravou seu nome como mestre do partido-alto e, mais que isso, como contador de histórias de um Brasil profundo, negro, sofrido e esperançoso.

Foi também no Cacique que Arlindo introduziu o banjo no samba, um gesto revolucionário que daria identidade ao grupo Fundo de Quintal, do qual fez parte por uma década. Foram dez discos com o grupo e uma caminhada que moldou o que hoje chamamos de samba moderno.

Arlindo era mais que sambista. Era cronista, filósofo popular, e acima de tudo, um homem que via beleza onde muitos só enxergam dor. Ao lado de Sombrinha, construiu um repertório que desafiava o efêmero e celebrava o eterno. Em canções como “O que é o amor”, deixou pistas sobre sua alma:

“O que é o amor? Ninguém sabe explicar, ninguém sabe viver sem…”

Autor de 795 músicas registradas, Arlindo Cruz deu voz a quem muitas vezes não era ouvido. Suas letras foram cantadas por Mart’nália, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, entre tantos outros. Seus sambas-enredo embalaram carnavais inesquecíveis, especialmente pelo Império Serrano, escola que carregava no peito como fé.

Arlindo Cruz, Martinho da Vila e Mart'nália - Foto: Reprodução
Arlindo Cruz, Martinho da Vila e Mart’nália – Foto: Reprodução

Em 2023, a verde e branca de Madureira retribuiu esse amor com o enredo “Lugares de Arlindo”, um desfile que emocionou o Brasil ao trazer o compositor, em cadeira de rodas, no último carro alegórico, ao lado de sua companheira de vida, Babi Cruz.

Arlindo viveu com intensidade até onde o corpo permitiu. O AVC de 2017 o silenciou fisicamente, mas jamais abafou sua voz espiritual. Desde então, viveu cercado de amor, cuidado e respeito. Como num de seus versos mais ternos, “Meu lugar é caminho de Ogum e Iansã, lá tem samba até de manhã”, e talvez agora ele esteja exatamente nesse lugar: onde a música não para, e onde seus ancestrais o esperavam com pandeiros nas mãos.

Arlindo Cruz faleceu aos 66 anos - Foto: Reprodução/Washington Possato
Arlindo Cruz faleceu aos 66 anos – Foto: Reprodução/Washington Possato

Na eternidade, Arlindo Cruz não parte. Ele se transforma em tambor, em verso, em memória. Ele é parte do Brasil que samba com dignidade e canta sua fé nas esquinas da vida. Sua existência foi um ato de resistência e amor à cultura negra.

“Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar” — dizia ele, em uma de suas letras mais emblemáticas.

Hoje, Arlindo segue navegando, levado por esse mar de saudade que toma conta dos corações que aprenderam a sorrir e chorar com seus acordes.

Arlindo Cruz vive. Em cada roda de samba. Em cada esquina de Madureira. Em cada verso que transforma dor em beleza. O samba continua. E, como ele ensinou:

“O importante é que emoções eu vivi.”

Autor

  • Nicolas Pedrosa

    Jornalista formado pela UNIP, com experiência em TV, rádio, podcasts e assessoria de imprensa, especialmente na área da saúde. Atuou na Prefeitura de São Vicente durante a pandemia e atualmente gerencia a comunicação da Caixa de Saúde e Pecúlio de São Vicente. Apaixonado por leitura e escrita, desenvolvo livros que abordam temas sociais e histórias de superação, unindo técnica e sensibilidade narrativa.

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