A proposta de padronização do tratamento contábil de criptoativos no Brasil entrou em nova fase de debate. Em consulta pública até 30 de setembro, a minuta do CPC 48, elaborada pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis e estabelece critérios para o reconhecimento, mensuração e divulgação desses ativos nos balanços financeiros de empresas brasileiras. Prevista para entrar em vigor em janeiro de 2026, a norma é considerada um marco regulatório no setor, mas vem acompanhada de críticas técnicas e pedidos de ajustes.
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Um dos principais avanços da proposta é o fim da dispersão de práticas atualmente utilizadas no mercado. Enquanto algumas companhias classificam criptomoedas como ativos financeiros, outras as tratam como intangíveis. O novo texto propõe uma categoria contábil específica para criptoativos, diferenciando-os de moedas tradicionais e commodities. Para empresas de capital aberto e investidores institucionais, a uniformização tende a melhorar a clareza e a comparabilidade dos relatórios contábeis.
A proposta também estabelece diretrizes rigorosas de transparência, com exigência de detalhamento sobre tipos de ativos digitais como tokens de governança e stablecoins , formas de custódia (carteiras frias ou quentes), e exposição a riscos como concentração e liquidez. Essa mudança visa alinhar o Brasil aos padrões internacionais definidos pelo International Accounting Standards Board (IASB), adotados por multinacionais com operação local, como Mercado Livre e Amazon.
No entanto, especialistas alertam para lacunas técnicas que, se não forem ajustadas, podem comprometer a qualidade da norma. O ponto mais sensível é o critério de mensuração obrigatória pelo valor justo. Embora esse método seja usado globalmente, ele pode introduzir forte volatilidade nos resultados contábeis de empresas que mantêm criptoativos em longo prazo, como estratégia de tesouraria ou proteção cambial. A proposta de alguns contadores é permitir o uso combinado de custo histórico e reavaliações periódicas, especialmente quando não há intenção de venda no curto prazo.
Outro aspecto controverso é o tratamento genérico dado aos tokens não fungíveis (NFTs). A minuta não diferencia finalidades como arte digital, utilidade funcional ou colecionáveis o que, segundo auditores, pode gerar distorções na mensuração e nos relatórios das empresas. A sugestão de especialistas é criar subcategorias conforme o uso do ativo, ampliando a precisão das demonstrações contábeis.
Na prática, esses desafios já aparecem em casos existentes. Empresas do varejo discutem como registrar programas de cashback com criptomoedas se como despesa de marketing, como propõe o CPC, ou como instrumento financeiro. Fundos que operam com agrotokens, por sua vez, questionam como reportar esses ativos ligados ao setor agrícola, que misturam aspectos físicos e digitais. E grandes empresas, como Vale e Itaú, analisam como contabilizar perdas não realizadas em ativos digitais mantidos para estratégias de longo prazo.
Mesmo com os impasses, o mercado vê a norma como um avanço necessário. A Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) estima que a padronização poderá atrair até R$ 18 bilhões em novos aportes institucionais no país até 2030. Esse movimento daria mais robustez a um mercado que cresce rapidamente, mas ainda enfrenta desconfiança regulatória e contábil.
O cronograma prevê a obrigatoriedade da norma para empresas listadas a partir de 2026. Em 2027, a aplicação será estendida a empresas de médio porte e fundos de investimento. Até lá, o CPC espera receber contribuições técnicas que equilibrem os objetivos de padronização com a realidade operacional das companhias brasileiras.
“É uma construção histórica, mas exige cautela. A natureza híbrida dos criptoativos precisa ser refletida na norma para que ela funcione na prática” – Carla Siqueira, coordenadora da Comissão de Criptoativos do Conselho Federal de Contabilidade (CFC).
Enquanto o setor contábil se mobiliza para enviar sugestões até o fim de setembro, o avanço do CPC 48 reforça a percepção de que o Brasil está se preparando para tratar os ativos digitais com o rigor técnico necessário uma demanda cada vez mais urgente diante da digitalização das finanças e do interesse crescente de empresas e investidores por criptoativos.