Você já notou que, nos últimos tempos, o reggae vem ganhando força no meio dos jovens? É comum vermos, nas redes sociais, vídeos de pessoas em bailes com músicas e danças típicas. Davi Gomes, mais conhecido como Brown, explicou como esse movimento surgiu. Mas, antes, vamos voltar um pouco no tempo para entender como esse estilo ganhou força no Brasil.
O reggae vem da cultura Rastafári. Inicialmente, o estilo musical era como um hino, voltado mais para o lado espiritual. Essa cultura surgiu na Jamaica na década de 1930 e é um movimento religioso e cultural que combina elementos do judaísmo, cristianismo e crenças africanas, com forte ênfase na valorização da cultura e da história negra. Os rastafáris creem que o imperador etíope Haile Selassie I, conhecido como Jah, é um tipo de “Messias” que os levaria de volta para a África.
Para entender melhor, Haile Selassie (1892–1975) foi imperador da Etiópia e se tornou muito mais do que um líder político: foi símbolo de resistência e esperança. Conhecido por enfrentar a invasão italiana e lutar pela liberdade de seu povo, Selassie conquistou respeito internacional.
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O reggae chegou ao Brasil no final da década de 1970, impulsionado pelo sucesso internacional de Bob Marley e pela expansão da cultura rastafári. As primeiras influências vieram através de discos importados, viajantes e rádios que sintonizavam transmissões do Caribe. No Maranhão, o ritmo se popularizou rapidamente, especialmente em São Luís, onde ganhou força e se tornou um símbolo cultural.
Os bailes de reggae, que hoje se tornam cada vez mais populares, tiveram início nos anos 60, também na Jamaica. Surgiram como um movimento formado por jovens, rejeitado pelos mais velhos por ser livre para falar de qualquer coisa. E aí, o que seria apenas espiritualizado, passa a ser também uma forma de falar sobre a realidade. O movimento foi crescendo como uma dança de rua, realmente um rolê de rua.
Ao se espalhar pelo mundo, o reggae foi sendo influenciado pela cultura local. No Brasil, não é diferente. Brown afirma que o rap tem forte influência, principalmente pelas roupas largas, e também o funk no aspecto musical:
“Aqui no Brasil tem muito disso também, basicamente a gente percebe uma influência muito forte do rap. Nas roupas largas e tudo mais. E agora, muito forte também do funk. Nas letras e nas músicas.”
— Brown
O interessante é que, no movimento, em comparação a outros grupos, o preconceito é mínimo. É um grupo muito acolhedor. Existem os chamados “coletivos”, que são basicamente encontros de pessoas do mesmo grupo social. Brown cita, por exemplo, um coletivo formado somente por membros LGBTQIA+. Isso não impede que episódios ruins aconteçam, mas é algo considerado raro. Um dos conceitos principais é você se amar do jeito que é:
“O público em si, é um público que abraça muita gente. Tem, por exemplo, coletivos que são feitos 100% de membros LGBT’s, sabe? Então isso sempre abraçou muito bem todo tipo de gente assim. Isso é uma coisa que eu admiro desde o começo.”
— Brown
Coletivos nada mais são do que encontros de pessoas, geralmente amigos, que se reúnem para ouvir músicas e dançar. Há funções bem definidas: o dono do sistema de som, os seletores, os MCs. O coletivo sempre tem um nome e organiza seus rolês, podendo convidar outros grupos para tocar.
Em todo caso, algo que permanece desde a Jamaica são as batalhas entre grupos, conhecidas como Clash, em que disputam pela qualidade do som e pelo número de músicas. Existem também rivalidades “bobas”, que não têm motivo algum, os grupos apenas não se batem (e está tudo bem).
Como em tudo, no reggae também existem lados positivos e negativos. Entre os pontos positivos está o crescimento da periferia, não só pelo funk, mas também por outros âmbitos artísticos. Existem MCs de reggae, e a cultura jamaicana se fortalece também por meio do underground.
Por outro lado, o apagamento de raízes também chegou nesse movimento. A indústria pegou algo que falava sobre resistência e luta e transformou em um produto vazip, que muitas vezes não carrega mais nenhuma mensagem.
“O ponto negativo é a capitalização das coisas. Assim como acontece com o funk, assim como aconteceu com o rap, que virou trap. Eles pegam uma cultura de periferia, arrancam toda a parte da resistência, toda a parte da mensagem e transformam em um produto enlatado.”
— Brown
Outro ponto polêmico é a cannabis. Na Jamaica, dentro do movimento rastafári, ela é considerada sagrada, consagrada e respeitada. Já no Brasil, por conta da criminalização e da visão social, seu uso muitas vezes aparece mais como ostentação.
“Claro que o uso que a gente faz aqui, muito por conta da consequência social, da criminalização, dela ser taxada como droga, e tudo mais… a gente acaba fazendo uso dela tal como uma droga. Usando todos os dias, como artigo de luxo. Então isso acaba influenciando bastante.”
— Brown
A cannabis, apesar de ilegal, é uma planta natural. No movimento, a luta contra drogas químicas já foi muito forte.
“Uma falta que eu sinto… é que tá acabando as músicas anti-drogas químicas. Isso existia desde a Jamaica, tipo, anti-cocaína, anti-crack. Isso era uma coisa muito forte lá na Jamaica, ficou por um tempo, e hoje em dia tá sumindo. Eles ainda glamurizam a cannabis, ainda sexualizam muitas letras, mas essa parte da conscientizaçã vem sumindo mais.”
— Brown
Apesar de o reggae ser um movimento de acolhimento, celebração e conexão, sua luta também é muito presente. Brown explica que a ideia de “não podemos abaixar a cabeça para os vampiros colonizadores, nós somos Rastafáris” sempre esteve ali. Tafari era o nome de Haile Selassie antes de virar príncipe. “Ras” significa “Príncipe”. Ou seja, Príncipe Tafari. Se autointitular Rastafari é se reconhecer como um pequeno deus, assim como Jah.
“O reggae deveria, pelo menos, hoje em dia isso vem sumindo com o tempo. Mas deveria ter essa noção do consciente coletivo. Nós somos resistência, somos raízes. Temos uma terra para onde voltaremos. Essa noção de ‘faço parte de um povo que é forte, que resiste, que tem raízes em reis. Que tem uma língua própria, que tem uma fé própria, e não necessita da imposição europeia para existir. Não precisa se render ao deus branco para existir’.” Isso vem faltando um pouquinho, e tinha muito forte
— Brown
Hoje, 17 de agosto, seria aniversário de uma figura muito importante para a Jamaica: Marcus Mosiah Garvey Jr. (1887–1940). Líder político, ativista e defensor do pan-africanismo, nascido na Jamaica, ele é mais conhecido por fundar a Universal Negro Improvement Association (UNIA), um movimento que buscava a unidade e o empoderamento dos povos africanos, incentivando o retorno à África e a valorização da identidade negra.
Garvey pregava orgulho racial, independência econômica e resistência à opressão colonial e racial. Suas ideias influenciaram diretamente o movimento rastafári e, consequentemente, a cultura reggae, que incorporou valores de resistência, liberdade e consciência negra.
O reggae segue como um movimento cultural relevante, especialmente entre os jovens. Das tradições rastafáris na Jamaica, inspiradas por líderes como Haile Selassie e Marcus Garvey, aos bailes e coletivos no Brasil, a música mantém seu papel de afirmação da identidade negra. Mais do que entretenimento, os bailes se tornaram espaços de acolhimento, expressão cultural e debate social, preservando valores de consciência, união e orgulho das raízes africanas.
Ainda assim, como apontam os próprios participantes do movimento, muitas das mensagens de resistência original vêm se apagando diante da mercantilização e do enlatamento da música. Mesmo assim, o reggae continua inspirando jovens a se reconhecerem como parte de uma história de luta, resistência e identidade.
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