Apologia para quem? Liberdade de expressão com CEP marcado

Nos últimos dias, o MC Poze do Rodo voltou a ser alvo de investigações sobre apologia ao crime, ou melhor, nunca deixou de ser. Segundo o Ministério Público, as investigações apontam que as letras do cantor exaltariam o tráfico. A denúncia se baseia em videoclipes e trechos de músicas, algo que levanta a discussão sobre liberdade artística e seletividade. A forma brutal como o cantor foi abordado dentro de sua casa, levado como um animal, descalço, sem camisa e conduzido pelo pescoço. Causa extrema revolta em todos que são representados e que vivem a mesma realidade retratada em suas músicas. Além disso, há uma verdade que urge a ser discutida: por que, quando um artista periférico canta sobre a sua vivência, isso vira caso de polícia?

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Ser favelado e artista no Brasil parece exigir mais do que talento, exige resistência. O funkeiro, o rapper, o MC, o poeta da quebrada, muitas vezes se torna alvo de um sistema que prefere criminalizar a mensagem do que encarar a realidade de onde ela vem.

O gênero do funk em si já é alvo de preconceito desde os seus primórdios. E passou a ser ainda mais atacado quando se tornou uma manifestação cultural de massa, que reflete a vida cotidiana em morros e comunidades. Quando você vai a público cantar sobre o que vive e critica um sistema falho, quem está no poder acha mais fácil ignorar a mensagem passada e a realidade que não é vivida, mas que não quer que seja mostrada.

Além disso, o que significa fazer apologia ao crime? No Código Penal, Art. 287 — Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime. A verdade é que isso é descrito de forma vaga, muito mais subjetiva do que concreta. Não basta mencionar um crime ou o nome de um criminoso, é preciso haver claro tom de exaltação. E isso depende muito mais da interpretação de um policial ou juiz.

Segundo o advogado criminalista e professor Renato Fazio, para que se configure o crime de apologia, não basta apenas mencionar ou relatar fatos ligados ao crime. É necessário que haja uma intenção clara de enaltecer ou incentivar essas práticas. A simples descrição da realidade vivida em comunidades, ainda que envolva atos ilegais, não pode ser automaticamente enquadrada como apologia, pois a lei exige mais do que isso, exige exaltação deliberada.

Outro fator é que o funk é um espelho. Ele não cria realidades paralelas ou fictícias, pelo contrário, ele reflete algo que é vivenciado todos os dias. É uma denúncia, uma representação de quem não tem voz para falar sobre a única escolha que tem para sobreviver. E por que só essas músicas se tornam apologia?

A seletividade fica ainda mais evidente ao analisarmos que, quando um jornalista cobre uma matéria sobre tiroteio, não é visto como apologia. Um cineasta ou ator representando um traficante não é visto como apologia. Então por qual motivo um MC cantar sobre a realidade que fez parte da sua vida por muitos anos é visto como incitação ao crime? Por que não é visto como uma mensagem de alguém que conseguiu mudar sua realidade?

Podemos observar a diferença de tratamento entre artistas do mesmo gênero. Enquanto MC Poze do Rodo, que tem seu passado ligado ao tráfico e aborda diretamente armas e drogas em suas letras, enfrenta investigações e criminalização, outros artistas do funk como MC Hariel, que não possui esse histórico e aborda a favela sob uma perspectiva diferente, sem focar tanto em armas e drogas, não são alvos das mesmas perseguições. Essa discrepância revela que a criminalização da arte periférica vai além do conteúdo musical, sendo influenciada também pelo perfil do artista, sua exposição pública e o estigma social que o acompanha.

Em músicas sertanejas, falar sobre álcool, brigas e traições não é visto como apologia. Por que o personagem de Wagner Moura como Pablo Escobar é considerado atuação genial, enquanto um MC é tachado de criminoso? Para ser aceito, o seu viés social é levado em conta.

Na música “Filho do Dono”, feita pelo Oruam, part. Cabelinho, isso é cantado de forma clara:

“O menorzin sem expectativa
Doido pensando em mudar de vida
Encontrou o suporte, o oitão
Garrou a vida e pegou no plantão”

Foto: Reprodução | Mariana Pekin/UOL

Analisando outra música do Oruam, dessa vez do álbum Liberdade:

“Oi, boladão, pesadão, não conto com a sorte
Minha Glock travou no Robocop
O tráfico tá virando esporte
Formou foi mó complexão
Mas o que falta é educação

O dia que o fuzil e a pistola valer mais que um livro
Aí tem algo errado
Eles dão arma pra nós
Depois pergunta por que somo bandido”

Em entrevista ao Bial, o MC Cabelinho reforça a ideia da seletividade:

“O que me intriga, eu deixei isso bem claro no vídeo que eu postei. É que, eu atuei em uma novela das 21h, chamada Amor de Mãe. E eu fiz o papel de um traficante, e era arte. Eu fiz o Hugo em Vai na Fé, em uma novela das 19h, na Globo. Que também era um bandido traficante, e aquilo ali era uma arte. Os roteiristas que escrevem a novela, os filmes que relatam a vida do traficante na favela, a vida do morador na favela. Quando eles escrevem, é arte. Quando o MC canta, o MC funkeiro, favelado canta a realidade, relata a realidade do que acontece na favela, é apologia ao crime.

Bial, isso é muito subjetivo, mano. Quem define isso? Quem define que quem faz apologia ao crime ou não? Tipo, não sou eu, não é você. É o desembargador? É o juiz? É o político que gosta de criminalizar o pobre, preto, favelado. É o racista que não quer ver a gente bem. Essa lei, ela tem cor, gênero e classe social. E você não gostar do que eu canto, está tudo bem. Eu não vou deixar de cantar a minha realidade só porque você quer. Se você não quer que eu cante o que eu canto, mude a minha realidade.”

Por fim, esse contexto é só mais uma prova de que a periferia é represada em todos os âmbitos. É mais uma evidência de que, independente de você mudar de vida ou não, você continuará sendo marginalizado. Enquanto você lutar, mostrar e questionar a sociedade em que vive e quem está no poder, você será alvo. O funk é sobre espera. A criminalização da arte periférica não é sobre segurança pública. É sobre controle social. Enquanto houver mais censura do que escuta, a periferia seguirá sendo silenciada. E enquanto a arte da favela for julgada pelo seu endereço, não existe liberdade de expressão, só permissão seletiva.

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