O modernismo brasileiro aconteceu entre 1922 e 1960. Em algum momento do seu ensino médio, você deve ter ouvido falar no bando de meninos abandonados que viviam do roubo e moravam em um trapiche na praia. Capitães da Areia, apesar de ser uma obra escrita na 2ª era da fase modernista (1930–1945), segue uma linha atemporal e nos mostra que a sociedade atual é um reflexo da antiguidade.
A segunda fase do modernismo foi caracterizada pela busca da identidade nacional e por obras que se aproximavam da realidade social e política. Jorge Amado (1912–2001) fez parte do que chamamos de “Geração de 30”. Em seus livros, o escritor retratava a realidade do povo periférico da Bahia, explorava a vida de personagens apagados e que lutavam por uma condição de vida digna.
Capitães da Areia teve milhares de exemplares queimados em praça pública, na era do Estado Novo, época em que Vargas estava no poder. Mais de 1,8 mil obras foram destruídas, acusadas de propagarem o comunismo. Além disso, Jorge foi exilado duas vezes. A primeira vez foi entre 1941 e 1942, e a segunda, após a ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1947, quando ele, sua esposa e filho foram viver na França, sendo posteriormente expulso em 1950 por ser comunista, conforme relatos de biógrafos.
LEIA TAMBÉM: Carnaval 2026: Grupo de Acesso I de São Paulo será transmitido pela Band
No livro, o autor retrata a dura realidade de um bando de meninos que viviam pelas ruas de Salvador – BA. Um grupo com mais de 100 crianças, com idade entre 8 e 16 anos. A violência policial, a intolerância religiosa e o preconceito social são outras críticas contidas na obra.

Seguindo nessa linha, a dúvida é: o que um livro escrito há mais de sete décadas tem a ver com os dias atuais?
Paralelamente ao livro, basta comparar a situação de vida das crianças retratadas e a grande parcela da população que vive abandonada. No Brasil, crianças em situação de vulnerabilidade enfrentam desafios significativos. São mais de 28 milhões, ou seja, metade das crianças e adolescentes vivendo em condições de pobreza multidimensional.
Essa situação se manifesta em várias dimensões, como renda, educação, acesso a serviços básicos como água e saneamento, moradia e proteção contra o trabalho infantil e a insegurança alimentar. No livro, as crianças viviam à margem da pobreza. Abandonadas, vistas como marginais e punidas como se fossem as piores pessoas do mundo por usarem o crime como tentativa de sobrevivência.
O único do bando que sabia ler era o que chamavam de Professor. Um menino de 15 anos que fazia da arte seu refúgio: desenhava e lia para esquecer dos problemas. Mera semelhança com os jovens atuais, que usam da música, do rap, hip hop, grafite e outros meios de expressão para retratar suas vidas. Assim como todos os exemplos que eu já retratei em várias matérias.
Olhe também os guardas que viviam à espreita para levá-los para os centros de detenção para menores. O livro mostra que um dos personagens, chamado Sem Pernas, cujo apelido se deu por ser coxo, sofreu nas mãos dos policiais, que o trancaram em uma sala escura e mandaram-no correr em círculos. Em cada canto havia um guarda com cacetete, e quando o menino passava, recebia uma surra. Por ser coxo, zombavam dele. Um ciclo que não tem fim. Quando falamos em polícia nas periferias, associamos a tiroteios nas favelas, a jovens que perdem suas vidas por tamanha irresponsabilidade e por estigmas associados à cor da pele. Ontem no trapiche, hoje nas vielas.
Além do Professor, cada menino do bando carrega uma história que, mesmo com o tempo, continua se repetindo nas periferias. Pirulito, movido pela fé, representa os jovens que encontram na religião um alívio para a dor, tentando se afastar do crime sem deixar de carregar a culpa. Gato, sedutor e vaidoso, é o reflexo de muitos que buscam afeto e aceitação em relacionamentos passageiros, como forma de preencher o vazio deixado pela ausência familiar.
Já Sem Pernas é o retrato cru da dor, um menino com deficiência, machucado pela vida e pela violência policial. Ele representa os tantos jovens invisíveis, alvos fáceis do Estado, que carregam nas costas o peso do abandono e do preconceito. É o retrato do ódio que surge em meio a tantas pressões. E tem também Boa-Vida, sempre com um sorriso no rosto, mesmo na dificuldade. É aquele que tenta disfarçar a dor com humor, como tantos jovens hoje que fazem rir nas redes, mas vivem realidades duras por trás da tela. Jorge Amado criou personagens que não são apenas ficção, são espelhos e continuam existindo, com outros nomes, nas ruas de todas as grandes cidades do Brasil.
Temos também a participação de Dora, a única menina do bando. Sua presença rompe a lógica masculina e endurecida do grupo. Sua chegada traz afetos, fragilidades e também tensões. Vista como irmã, amiga e, para alguns, amor possível, Dora representa a mulher periférica que resiste em meio ao abandono e à violência. Mesmo jovem, ela enfrenta o machismo, o peso de ser mulher num espaço dominado por homens, e encontra no grupo a tentativa de construir pertencimento. Sua trajetória evidencia a solidão feminina nas margens da sociedade e reforça que, mesmo em meio à brutalidade, há espaço para laços e afetos.
Jorge Amado foi genial por colocar no centro da literatura brasileira os personagens que a sociedade insistia em ignorar. Em Capitães da Areia, deu nome, voz, sonhos e dores a meninos que, para muitos, eram apenas “marginais”. Sua escrita é, ao mesmo tempo, denúncia social e celebração da humanidade dos esquecidos. E foi ainda mais genial por escrever de forma simples, acessível, sem elitismo, para que qualquer pessoa pudesse, ao ler suas obras, enxergar o Brasil como ele sempre foi.
Agora, uma pergunta um tanto provocativa (ou reflexiva): o quanto o Brasil evoluiu da década de 30 até aqui?