Crítica: Caju, de Liniker: entre carências expostas, exuberância sonora e irregularidades emocionais

Após três premiações no Grammy Latino de 2025, por Caju, o Portal Ponto360 decidiu decifrar o que fez o segundo álbum de Liniker se tornar um fenômeno na América Latina. E lá vamos nós, ok?

Em Caju, seu segundo álbum solo, Liniker mergulha profundamente em um universo de afetos, carências e confissões. O disco, lançado em agosto de 2024, nasce de um impulso íntimo: a necessidade de falar de amor, e da falta dele, com franqueza, ora desnuda, ora escapando pelo excesso. Entre grandiosas orquestrações, ritmos variados e uma produção analógica meticulosa, Liniker constrói uma obra ambiciosa, afetiva e, ao mesmo tempo, irregular.

LEIA TAMBÉM: Grammy Latino 2025: Bad Bunny domina a noite e Liniker leva três estatuetas

A entrada nesse mundo se dá pela faixa-título, uma balada que resume o espírito do álbum: desejo exposto, fragilidade assumida e uma estética que abraça o drama sem medo. Piano, sintetizadores e programações acompanham a voz de Liniker, que sussurra, implora e entrega trechos da própria alma. Esse tom confessional permeia toda a obra, seja no pagode cotidiano de “Febre”, seja nas atmosferas cinematográficas distribuídas pelo disco.

Liniker na música-título "Caju" - Foto: Reprodução/Youtube
Liniker na música-título “Caju” – Foto: Reprodução/Youtube

A opção pelo analógico, abraçada por Liniker, Gustavo Ruiz e Fejuca, funciona como uma assinatura. O som tem textura, corpo, uma pulsação orgânica que foge do imediatismo digital. Trata-se de um disco que exige tempo e que se recusa a existir apenas como produto: Caju quer ser uma experiência contínua, quase um filme auditivo, em que cada faixa se costura à seguinte como uma cena.

Essa grandiosidade fica explícita em arranjos monumentais, como em Veludo Marrom, que ganha vida quando a Orquestra Jazz Sinfônica irrompe no terceiro minuto. Mas é “Ao Teu Lado” que representa o ponto mais alto da obra: uma balada poderosa, guiada pelo piano límpido de Amaro Freitas e coroada pelas vozes de Ana Caetano e Vitória Falcão (Anavitória). É ali, no encontro entre o clássico e o contemporâneo, que Caju encontra sua forma mais plena.

Liniker na música "TUDO" - Foto: Reprodução/Youtube
Liniker na música “TUDO” – Foto: Reprodução/Youtube

Por outro lado, a partir da metade, o álbum perde coesão. Negona dos Olhos Terríveis, parceria com BaianaSystem, carece da pressão típica do grupo; Popstar soa descartável, apesar de ser um bom complemento à Pote de Ouro, que é muito divertida, teve clipe dançante lançado recentemente, mas se dilui entre referências ao brega e ao arrocha (não que seja negativo, pelo contrário, mas escapa do que vinha sendo proposto no início do álbum).

Em contrapartida, há acertos pontuais e iluminados: o R&B (Rhythm and Blues) elegante de Papo de Edredom, com Melly; o samba-rock fluido de Mayonga; e a explosão disco de Deixa Estar, onde Liniker divide holofotes com Lulu Santos e Pabllo Vittar, em uma faixa tão grandiosa quanto desigual.

A incursão pela música eletrônica em “So Special”, com o Tropkillaz, coloca Liniker na pista, enquanto “Take Your Time e Relaxe” fecha o disco como uma carta a si mesma, uma reflexão sobre autocuidado, tempo e sobrevivência emocional, reforçando a natureza íntima do álbum.

Confira “Filhos do Silêncio”

Ao longo de suas 14 faixas e uma hora e nove minutos, Caju desafia o consumo musical acelerado da era dos streamings. Liniker cria um trabalho pensado para ser ouvido por inteiro, em um só fôlego, como quem assiste a uma obra extensa e detalhada. É um projeto que nasceu em hotéis, em Salvador, em silêncios e inquietudes, e que agora ecoa nos palcos e nas grandes premiações, onde a artista tem sido reconhecida pelo conjunto da obra.

A diversidade de ritmos não é apenas uma demonstração de versatilidade, mas um mapeamento afetivo do Brasil: do pagode ao jazz, do R&B, do samba ao pop, do reggae à disco, Caju funciona como um mosaico da pluralidade musical brasileira, preservando a voz singular de Liniker. Em meio a essa colcha de retalhos, a artista afirma sua identidade, sua ancestralidade e sua presença no cenário contemporâneo.

Há excessos? Sim. Há faixas que se perdem? Sem dúvida. Mas há também momentos de beleza inquestionável, de densidade emocional e de uma maturidade artística que reafirma Liniker como um dos nomes mais relevantes da nova geração. Caju é um álbum que sangra, dança, chora e vibra, e talvez seja justamente essa imperfeição que lhe concede vida.

Ouça o Álbum“Caju”

E A NOTA, PONTO?

⬤⬤⬤⬤◯ (4/5) — Um disco expansivo, afetivo e ousado, que brilha em seus momentos mais orquestrais e confessionais, mas que nem sempre se sustenta pela própria ambição. Ainda assim, um marco importante na trajetória de Liniker e um capítulo luminoso da música brasileira.

Liniker triunfa no Grammy Latino 2025: três vitórias que redefinem o peso artístico e político de Caju

Na noite em que o Grammy Latino voltou seus holofotes para a potência da música em língua portuguesa, Liniker escreveu um dos capítulos mais emblemáticos da história recente da premiação. Das sete categorias em que concorria, a artista levou três troféus, Melhor Intérprete Urbana em Língua Portuguesa, Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa com Caju, e Melhor Canção em Língua Portuguesa por Veludo Marrom. Mais do que vitórias, esses prêmios representam o reconhecimento internacional de um disco que desafia fronteiras estéticas, espirituais e identitárias.

Liniker | Foto: Greg Doherty/ Getty Images
Liniker | Foto: Greg Doherty/ Getty Images

Em seu discurso, Liniker transformou o palco em manifesto, reafirmando o peso de existir e criar como uma mulher travesti em um país que frequentemente tenta apagar essas presenças.

Ao declarar que “ser uma compositora, ser uma travesti compositora no Brasil que mata a gente é difícil demais”, ela deslocou a própria cerimônia para o campo da memória e da responsabilidade histórica. Caju não venceu apenas pela excelência técnica, venceu porque carrega uma verdade que atravessa, fere, cura e ilumina. E o Grammy Latino, ao reconhecê-la, legitima não só sua arte, mas a urgência de sua narrativa.

Autor

  • Nicolas Pedrosa

    Jornalista formado pela UNIP, com experiência em TV, rádio, podcasts e assessoria de imprensa, especialmente na área da saúde. Atuou na Prefeitura de São Vicente durante a pandemia e atualmente gerencia a comunicação da Caixa de Saúde e Pecúlio de São Vicente. Apaixonado por leitura e escrita, desenvolvo livros que abordam temas sociais e histórias de superação, unindo técnica e sensibilidade narrativa.

Marcado:

Deixe um Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *