Quarto de Despejo: o legado de Carolina Maria de Jesus

A década de 1950 no Brasil ficou marcada pela intensa modernização, urbanização e consolidação da sociedade de massa, impulsionadas pela industrialização e pela expansão dos meios de comunicação. Esse cenário trouxe transformações sociais significativas, como o surgimento de uma juventude urbana e consumista, a difusão de novas expressões culturais e um forte êxodo rural, que concentrou cada vez mais pessoas nas cidades. Mas você já refletiu sobre o que aconteceu com a parcela marginalizada da população?

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Em 1948, o então governador paulista Adhemar de Barros determinou o recolhimento dos mendigos das ruas e o despejo deles em um grande terreno à margem esquerda do Rio Tietê. Assim nasceu a favela do Canindé, cenário do livro Quarto de Despejo.

Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914, na cidade de Sacramento, Minas Gerais. De origem humilde, era neta de escravizados e uma entre os oito filhos de uma lavadeira analfabeta. Desde cedo, demonstrou um intenso desejo de aprender a ler e uma curiosidade incessante pelo mundo ao seu redor. Em seus diários, Carolina não apenas relatou a difícil rotina ao lado de seus três filhos, mas também registrou com sensibilidade o cotidiano dos moradores da favela em que vivia.

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O livro é fruto da junção desses diários e apresenta uma linguagem simples, que aproxima a autora dos leitores. Os editores decidiram manter alguns trechos com erros de escrita, evidenciando que Carolina teve apenas dois anos de educação formal aos sete anos de idade, interrompida pela pobreza e pelo trabalho familiar.

Além da força da escrita em diário, o livro chama atenção pelos temas recorrentes que atravessam a narrativa. Ao folhear suas páginas, o leitor se depara repetidamente com questões que ainda ecoam no Brasil de hoje. Fome, violência e racismo estrutural são apenas alguns dos problemas relatados. Uma frase que marcou foi: “A fome é amarela”. Nela, a cor amarela simboliza a dor física intensa que Carolina sentia, a tontura e a visão turva causadas pela ausência de comida, associadas à bile provocada pelo estômago vazio.

O título Quarto de Despejo é, literalmente, o espaço de uma casa destinado a guardar objetos velhos, quebrados ou sem utilidade. Carolina usou essa metáfora para se referir à favela, pois acreditava que a sociedade também “descartava” os pobres, negros e favelados, relegando-os à margem da cidade, sem dignidade nem oportunidades.

Em seus relatos, a autora mostra como os filhos lhe davam forças para continuar sua luta, mesmo nos momentos em que pensamentos de suicídio surgiam. As relações com os vizinhos também não eram fáceis, com diversos capítulos descrevendo brigas e conflitos cotidianos.

Em 1960, a obra foi publicada por um jornalista que buscava material sobre a favela. Ao ouvir Carolina brigando com alguns meninos e ameaçando colocar seus nomes no livro, percebeu seu talento. Publicou alguns relatos em jornal e reuniu outros para lançar Quarto de Despejo.

O lançamento do livro teve repercussão imediata. Em poucas semanas, vendeu mais de cem mil exemplares, número impressionante para a época. A obra foi traduzida para diversos idiomas e levou o nome de Carolina Maria de Jesus para fora do Brasil, sendo noticiada internacionalmente como a “escritora da favela”. Mais do que um sucesso editorial, o livro marcou a entrada de uma mulher negra e periférica em um espaço até então restrito às elites, rompendo barreiras e dando visibilidade a uma realidade que raramente ganhava voz na literatura brasileira.

Hoje, olhando para a sociedade atual, percebe-se que a obra permanece atemporal. A realidade das periferias ainda guarda semelhanças com a época em que Carolina vivia. Pessoas que lutam diariamente para sobreviver continuam enfrentando invisibilidade e marginalização. Um exemplo é a Cracolândia: quantas vezes já ouvimos que ela mudou de lugar? Quantas vezes seus moradores foram realocados como se não fossem ninguém?

Mais de 60 anos depois, as palavras de Carolina Maria de Jesus continuam ecoando: sua escrita não é apenas um diário, mas um alerta sobre desigualdade e invisibilidade social que ainda persistem no Brasil.

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