O Brasil tem hoje uma das maiores populações carcerárias do mundo, ultrapassando 800 mil pessoas presas. Em contrapartida, conta com menos de 1.500 unidades prisionais, um número incapaz de abrigar, com dignidade mínima, tamanha massa encarcerada. Superlotação, fome, negligência médica, repressão e controle de facções são a realidade dentro dos muros e fora do alcance da opinião pública.
A reportagem que você lê agora é fruto de uma investigação baseada em documentos oficiais, relatórios públicos, entrevistas com ex-detentos e especialistas. Ela mergulha no universo das prisões brasileiras para revelar um sistema que, longe de reeducar, adoece, violenta e marginaliza ainda mais quem por ele passa.
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Superlotação: um sistema colapsado
Dados do Relatório Preliminar de Informações Penais (Relipen) de 2023 apontam que os presídios brasileiros operam com excesso de 157.906 pessoas, o que representa uma superlotação de 32,44% além da capacidade formal. Em estados como São Paulo, Amazonas e Pernambuco, a taxa média de ocupação ultrapassa 150%.
Essa realidade é sentida na pele por quem esteve atrás das grades. “João”, ex-detento, contou à reportagem:
Era muito mais preso do que devia. Faltava comida, a fome era desgraçada. A gente sobrevivia. Sorte que o futebol ainda salvava
O impacto da superlotação vai além do desconforto. Ela potencializa doenças, aumenta a violência, impede a ressocialização e viola a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984, Art. 85), que determina lotação compatível com a estrutura.
Alimentação precária: fome e indignidade
As denúncias sobre a alimentação nos presídios são recorrentes. Relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) revelam casos de refeições estragadas, mal cozidas ou contaminadas com parafusos, ratos e pedras. Na Bahia, foram documentados intervalos de até 16 horas entre as refeições.
“Chico”, outro ex-presidiário, relatou:
“A comida não é legal. Não tem uma comida adequada, nem nutrientes. É só pra sobreviver mesmo.
Tuberculose? Se tem médico, não tem. Está com dor? É só dipirona. E ainda pensam que o preso está fingindo. Te batem com cano de ferro.
O direito à alimentação adequada é garantido por tratados internacionais como o Pacto de San Salvador (1996) e pela própria Constituição Brasileira (Art. 6º e Art. 5º, inc. XLIX), mas está longe de ser cumprido.
As prisões brasileiras se tornaram ambientes adoecedores, especialmente para a saúde mental dos detentos. A psicóloga Sandra Dreissig, que já trabalhou no sistema penitenciário, explicou em entrevista à Agência Uniceub:
A superlotação, o isolamento, o convívio forçado com outros internos e o medo constante afetam diretamente a saúde emocional. Isso pode gerar crises de pânico, depressão e surtos psicóticos
Em 2023, 1.773 presos morreram nas prisões brasileiras 191 por suicídio (10,8%). Joymir Guimarães, ex-detento, contou que passou anos sem diagnóstico, sofrendo com ansiedade e fobias. Sem atendimento, sem escuta, sem cuidado.
Violência e repressão: o controle pelo medo
A repressão por parte dos agentes também faz parte da rotina. “João” relatou como funciona em unidades mais severas:
Se chegar a contagem e o cara não estiver no pavilhão, perde benefício, perde saída. É sindicância. A comida é pouca, o policiamento é pesado. Lá, não chega celular, não tem moleza. A gente sobrevive.
“Chico” acrescenta
A inspeção da casa é o pior. Os caras são grandes, entram com cano de ferro. Não é pra conversar. É pra levar alguém e bater.
A Constituição Federal, Art. 5º, inciso III, proíbe tratamento cruel, desumano ou degradante. O que se vê, no entanto, é violência sistemática legitimada pelo silêncio institucional.
Facções: o poder que o Estado não exerce
Onde o Estado não atua, o crime se organiza. Dentro das prisões, facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) assumem funções administrativas, impõem regras e promovem “justiça interna”. João explicou:
Hoje tem o cara do caixa, da faxina, da comida. Tudo dividido. O barraco que escolhe quem organiza. Quem não presta, é ‘cambado’. Vai morar em outro lugar.
Estudos mostram que o PCC atua em 25 estados brasileiros, controlando rotinas internas e até o tráfico fora das muralhas.
O ciclo da exclusão: ressocialização ou abandono?
A Lei de Execução Penal determina que o sistema deve promover educação, trabalho e reinserção. Mas na prática, apenas 24% dos presos trabalham e 15% estudam. Menos de 20% conseguem emprego formal ao sair. A reincidência ultrapassa 46%, segundo o NEV-USP.
Aquele lugar não é nem pro inimigo. E quando você sai, ninguém quer saber de você. Não tem escola, não tem emprego. Só tem desprezo.
Sem políticas públicas eficazes, o ex-detento volta à criminalidade como única alternativa de sobrevivência.
A mídia e o papel da opinião pública
forma como a mídia retrata os presídios influencia diretamente na percepção pública e nas decisões políticas. O foco excessivo na violência e nas rebeliões constrói a imagem de que presos são irrecuperáveis, e que investir neles é desperdício.
Mas, como lembra o advogado criminalista Jean Moraes:
A lei existe. O problema é a vontade política e a falta de pressão da sociedade para que ela seja cumprida.
O que os muros escondem
O sistema penitenciário brasileiro não apenas falha em ressocializar ele produz sofrimento, morte e reincidência. As condições relatadas nesta reportagem configuram violações sistemáticas de direitos humanos, diante das quais o Estado se omite e a sociedade se cala.
Se a prisão deveria ser um local de reparação e recomeço, o que temos hoje é um ambiente de degradação e desespero.