Recentemente, o ex-atacante Júlio Baptista concedeu entrevista ao jornal italiano La Gazzetta dello Sport, onde afirmou que ainda vê um cenário de baixa presença de técnicos negros nas principais ligas de elite do futebol europeu. Mesmo com o crescimento e o protagonismo de jogadores negros — como Kylian Mbappé, Rodrygo, Vinicius Júnior, Ousmane Dembélé, Lamine Yamal, entre outros — a realidade não se reflete nas comissões técnicas, que seguem majoritariamente comandadas por treinadores brancos. Até a data desta publicação, apenas quatro técnicos negros dirigem clubes nas ligas Italiana, Inglesa, Espanhola, Alemã e Francesa.
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Um estudo realizado pela Black Footballers Partnership (BFP) aponta que, enquanto jogadores negros representam cerca de 43% dos elencos da Premier League e 34% das divisões profissionais da Inglaterra (EFL), a presença de técnicos negros é de apenas 4,4%. Esse abismo representativo — frequentemente descrito como um “teto” — indica que as barreiras para treinadores negros não são pontuais, mas estruturais, sustentadas por fatores econômicos, sociais e históricos.
A análise da BFP rejeita explicações simplistas como “falta de interesse” ou “falta de qualificação”. As evidências sugerem que o sistema de recrutamento opera por redes fechadas, prioriza nomes “consolidados” das comissões técnicas, impõe custos proibitivos nos cursos de formação — criando filtros socioeconômicos — e perpetua estereótipos raciais ligados à inteligência tática versus capacidade física (“racist stacking”). Some-se a isso a ineficiência de códigos de diversidade voluntários, que não têm produzido mudanças significativas.

O Abismo Demográfico nas Ligas Europeias
A análise das principais ligas do continente revela um padrão consistente de sub-representação:
Inglaterra (Premier League e EFL)
É o país com os dados mais completos, graças à pressão de grupos como a BFP e a Kick It Out.
Segundo relatório do professor Stefan Szymanski (2023) para a BFP, apenas 4,4% dos cargos de técnico em 2022 eram ocupados por negros.
Ex-jogadores negros têm menos chances de serem entrevistados ou contratados, mesmo quando comparados a colegas brancos com experiência semelhante.
- Embora 14% dos treinadores com Licença UEFA Pro sejam negros, apenas 1,6% ocupam cargos executivos ou de propriedade, desmontando o argumento de “falta de qualificação”.
França (Ligue 1)
A França vive um paradoxo: enquanto a seleção é símbolo global de diversidade, a Ligue 1 raramente tem mais de dois técnicos negros simultaneamente. Atualmente, Antoine Kombouaré, Habib Beye e Liam Rosenior são os únicos representantes — o que ainda faz da Ligue 1 a liga com mais técnicos negros entre as top-5.
Alemanha (Bundesliga)
A presença de treinadores negros é quase nula. Na Alemanha, a discussão sobre diversidade muitas vezes esbarra na negação institucional de que raça é um fator, apesar de estudos sobre “racist stacking” mostrarem o contrário, O único nome de destaque é Vincent Kompany, hoje no Bayern de Munique, sendo também o único negro na Bundesliga, que lidera com folga o campeonato.
Espanha (La Liga) e Itália (Serie A)
A ausência é total em ambas as ligas. A Espanha sofre com um sistema de recrutamento altamente regionalizado e pouco permeável a minorias. Na Itália, o racismo recorrente nas arquibancadas ecoa em estruturas de poder conservadoras que historicamente não abrem espaço para técnicos negros.
Os únicos nomes recentes na Itália são Fabio Liverani e Patrick Vieira (recém-demissionado do Genoa), ambos atuando entre Série A e B.

Formação de Treinadores: O Impacto do Modelo Educacional
Há uma divergência expressiva entre os modelos de formação na Inglaterra e em países como Espanha e Alemanha:
O Modelo Elitista Inglês
Obter credenciais na Inglaterra é caro e restritivo:
- UEFA Pro: até £9.890
- UEFA A: cerca de £3.645
Os cursos, realizados em St. George’s Park, têm vagas limitadas, criando um funil onde apenas quem possui recursos ou patrocínio de clubes de elite consegue avançar.
Isso afeta especialmente ex-jogadores das divisões inferiores — onde há maior diversidade racial.
O Modelo Democratizado Espanhol e Alemão
Na Espanha, a formação funciona quase como educação pública:
- UEFA A: ~€960
- UEFA Pro: ~€1.070
A Alemanha segue valores igualmente baixos (€430 a €530 nos níveis iniciais).
Resultado:
- Em 2017, a Espanha tinha mais de 15.000 treinadores com licença UEFA A ou Pro.
- A Inglaterra tinha menos de 1.800.
Apesar disso, o pool espanhol permanece majoritariamente branco devido à demografia local.
Tentativas de Correção
A FA e a PFA criaram programas de subsídio que reduzem até 85% do custo das licenças C e B.
Mas o grande gargalo, as licenças A e Pro, permanece praticamente inacessível.

O “Penhasco de Vidro” e a Precariedade dos Cargos
Mesmo quando conseguem superar as barreiras iniciais, treinadores negros enfrentam outro problema: o “Glass Cliff” (Penhasco de Vidro).
Eles são frequentemente contratados apenas quando:
- o clube está em crise,
- luta contra o rebaixamento,
- sofre cortes orçamentários,
- passa por turbulência administrativa.
Ou seja: são chamados para “apagar incêndios”. E quando a missão não é cumprida, o fracasso é atribuído à suposta incompetência, e não ao contexto.
Dados da BFP mostram que:
- Treinadores negros têm 41% mais chances de serem demitidos com desempenho equivalente ao de técnicos brancos.
- E demoram muito mais para conseguir uma nova oportunidade.
Exemplos emblemáticos:
Clarence Seedorf, multicampeão europeu, assumiu o Milan em um período crítico e foi demitido rapidamente.
Em suas palavras:
“Joguei 12 anos na Itália; após treinar o Milan, apesar de ter feito um bom trabalho, não recebi nenhuma ligação”.
Já Patrick Vieira, afirmou em 2023:
“Isso me incomoda muito. É difícil entender, e acho que isso mostra que ainda há um longo caminho pela frente.”
Confira “Filhos do Silêncio” de Andrea dos Santos
A escassez de treinadores negros no futebol europeu não é coincidência, nem falta de talento ou interesse. Trata-se de um sistema historicamente moldado para favorecer homens brancos, reproduzido por barreiras econômicas, redes fechadas e preconceitos arraigados.
Enquanto jogadores negros sustentam financeiramente o produto “futebol” — gerando bilhões em receitas, audiência e títulos — são sistematicamente impedidos de ocupar posições de liderança.
A ascensão de nomes como Vincent Kompany é inspiradora, mas ainda isolada frente à necessidade de uma mudança estrutural profunda. Sem uma intervenção estrutural — que vá além de códigos voluntários e ataque as raízes econômicas e sociais da exclusão — o “teto” permanecerá impenetrável para a vasta maioria, transformando o banco de reservas em um monumento duradouro à desigualdade racial na Europa e no futebol.









