Zuzu Angel: costurando memória e justiça em nome do filho desaparecido

A vida de Zuleika Angel Jones, a Zuzu Angel, poderia ter sido contada apenas pelas rendas, tecidos e cores que encantaram o mundo da moda nos anos 1960 e 70. Mas a história dessa mulher ultrapassa os limites da passarela e adentra os corredores sombrios da repressão militar no Brasil. Estilista consagrada internacionalmente, Zuzu tornou-se um dos maiores símbolos de resistência civil ao regime que mergulhou o país em mais de duas décadas de censura, tortura e desaparecimentos forçados.

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Seu filho, Stuart Angel Jones, era um jovem militante da esquerda revolucionária. Filho do americano Norman Angel Jones com Zuzu, Stuart estudava Economia na UFRJ e foi membro do grupo MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), organização que combatia a ditadura instalada em 1964. Como tantos jovens de sua geração, acreditava ser possível transformar o país com justiça social, liberdade e igualdade. Por suas atividades políticas, passou a ser perseguido, preso em 1971, foi brutalmente assassinado por agentes do regime.

Foto: Stuart Edgart Angel Jones

Segundo relatos de testemunhas, Stuart foi torturado no quartel da Aeronáutica no Rio de Janeiro um dos locais de repressão mais temidos sendo assassinado por asfixia, com a boca presa ao escapamento de um jipe militar. Seu corpo nunca foi entregue à família.

A dor de Zuzu, no entanto, não a paralisou. Ao contrário, ela se tornou uma voz incômoda para os generais no poder. Desafiou a censura, escreveu cartas à imprensa internacional e a autoridades estrangeiras, como o senador americano Ted Kennedy e até Henry Kissinger. Zuzu também levou sua luta para o campo simbólico: passou a incorporar imagens de violência, pássaros engaiolados, olhos chorando e tanques em suas coleções de moda. Seus desfiles, antes marcados por temas tropicais, passaram a denunciar o regime com cada costura. Foi a primeira vez na história da moda brasileira que uma estilista usou o vestuário como ato político explícito.

Mas a coragem cobrou seu preço. Em abril de 1976, após afirmar que estava sendo seguida por carros não identificados, Zuzu sofreu um acidente de carro misterioso, na saída do Túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro. Testemunhas apontaram interferência externa no veículo, mas o caso foi arquivado por anos como “acidente”. Só em 1996, o Estado brasileiro reconheceu oficialmente que sua morte foi um assassinato político, planejado para silenciá-la.

Com a morte de Stuart e Zuzu, Hildegard Angel assumiu a voz da memória. Jornalista renomada, Hildegard sempre se manteve firme na preservação da história de sua família. Foi uma das primeiras comunicadoras a dar nomes aos torturadores em público e participou ativamente das lutas pela abertura dos arquivos da ditadura. Em 2010, criou o Instituto Zuzu Angel, voltado à preservação da memória de sua mãe e de todos que tombaram na luta contra a repressão. Desde então, Hildegard tem sido uma das guardiãs mais atentas da memória política brasileira.

foto : Zuzu com seus três filhos, Hildegard, Ana Cristina e Stuart

A canção que transformou dor em denúncia

A história de Zuzu tocou profundamente muitos artistas e intelectuais, entre eles Chico Buarque, que compôs a música “Angélica”, em homenagem à estilista e a todas as mães que perderam seus filhos para a máquina repressiva da ditadura. A canção, feita em parceria com Miltinho do MPB4, foi censurada à época e só liberada anos depois.

Os versos comoventes : “Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho? / Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar” são um grito contido de todas as mães que, como a estilista, cantam para filhos que não puderam velar. A letra não menciona diretamente Zuzu, mas sua dor e sua luta estão em cada linha. A música se tornou um símbolo da resistência materna, ecoando o clamor silencioso das mães e familiares que até hoje buscam os corpos e a verdade sobre os desaparecimentos forçados.

Hildegard, Stuart e Zuzu (foto: Divulgação)

Reavivar a memória de Zuzu é também olhar para outras mães que, ontem e hoje, enfrentam o Estado em busca de respostas. Na ditadura, elas se organizavam em silêncio, com fotografias de filhos desaparecidos coladas ao peito. Hoje, mães de vítimas da violência policial, da negligência do sistema carcerário ou de ações do próprio Estado seguem clamando por justiça nas periferias do país. Mães que enterram filhos sem saber por quê. Mães que transformam o luto em luta, como fez Zuzu.

Num tempo em que há tentativas constantes de reescrever ou apagar a história, lembrar dessas mulheres não é apenas um gesto de homenagem é um ato político. É garantir que a verdade não se perca, que as vítimas não sejam invisibilizadas, e que a democracia nunca mais aceite a censura como resposta.

Zuzu não teve o corpo do filho para enterrar. Hildegard não teve o direito de ver sua mãe envelhecer. Mas o Brasil teve e ainda tem a chance de não esquecer.

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