No dia 23 de outubro de 1970, o Brasil perdia um dos rostos mais emblemáticos da resistência contra o autoritarismo: Joaquim Câmara Ferreira, militante comunista, jornalista e dirigente da luta armada contra a ditadura militar. Sua história de militância, tortura e morte sob o aparato repressivo do regime resume de forma brutal as contradições e violências de uma era que insiste em não ser esquecida.
Joaquim Câmara Ferreira nasceu em 5 de setembro de 1913, em Jaboticabal, interior de São Paulo, em uma família tradicional. Sua mãe faleceu vinte dias após seu nascimento, e ele foi criado pelos avós maternos. Seu pai era engenheiro, já tendo ocupado cargos públicos no município (prefeito por três mandatos).
Na juventude, estudou engenharia no curso politécnico, mas abandonou a engenharia para aprofundar estudos em filosofia na Universidade de São Paulo. Em 1933, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), ingressando ativamente na militância.
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Durante o regime do Estado Novo, passou à clandestinidade, sofrendo repressão e prisões. Ele dirigiu jornais do partido e veículos de imprensa clandestina, mantendo atuação junto à classe operária e aos movimentos estudantis e sociais. Ao longo das décadas de 40 e 50, liderou a imprensa partidária em São Paulo e participou de greves e mobilizações operárias.
Com o golpe de 1964 e o endurecimento do regime, Joaquim foi preso em uma palestra para trabalhadores em São Bernardo do Campo. Foi solto em seguida, mas condenado à revelia a dois anos de prisão.
Em 1967, rompeu com o PCB, insatisfeito com a linha pacífica do partido. Junto com outros militantes, assinou o Manifesto do Agrupamento Comunista de São Paulo, que se tornaria a base para a criação da organização guerrilheira Ação Libertadora Nacional (ALN).
Após o assassinato de outro líder da resistência, Carlos Marighella, em novembro de 1969, Joaquim retornou do exílio (estava em Cuba), assumiu o comando da ALN e defendeu o projeto de resistência armada inspirada em experiências internacionalistas (Cuba, guerrilha rural etc.). Uma das ações mais simbólicas da ALN foi o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969, que resultou na libertação de quinze presos políticos. Joaquim foi comandante político nessa operação.
Na noite de 23 de outubro de 1970, Joaquim foi preso em São Paulo, no bairro Indianópolis, na avenida Lavandisca, por agentes do aparato repressivo. Ele foi transferido para um centro clandestino de detenção e tortura conhecido como Fazenda 31 de Março (também chamada “Sítio 31 de Março” ou “Sítio do Fleury”), localizado na zona sul de São Paulo, local onde opositores do regime eram interrogados e submetidos a torturas físicas severas.
Testemunhas relatam que ele foi preso vivo e torturado com métodos brutais: pau de arara, afogamentos simulados, farpas de bambu sob as unhas de modo que suas unhas já haviam sido arrancadas por torturas anteriores. Segundo a presa política Maria de Lourdes Rego Melo, ele estava vivo no momento da prisão e a morte foi consequência direta das torturas.
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Poucas horas depois da prisão, ele faleceu. O corpo foi encaminhado ao Instituto Médico Legal e, posteriormente, sepultado pela família no Cemitério da Consolação, em São Paulo.

Joaquim Câmara Ferreira – Foto: Arquivo Histórico
Com a redemocratização, ele foi reconhecido oficialmente como vítima da repressão. Em outubro de 2010, recebeu anistia póstuma, sendo declarado “jornalista e combatente herói do povo brasileiro”. A Câmara Municipal de São Paulo concedeu-lhe o título de cidadão paulistano “in memoriam”.
Seus filhos também foram homenageados com diplomas de gratidão e medalha de honra (Medalha Anchieta). Além disso, seu nome dá título a ruas e avenidas em várias cidades brasileiras, como São Paulo, Recife e Rio de Janeiro.
A trajetória de Joaquim Câmara Ferreira representa múltiplas dimensões de resistência: desde a imprensa clandestina até a ação política e, por fim, a luta armada, marcada por uma convicção inabalável de promover mudanças sociais.
Ele é símbolo de quem sacrificou a própria vida em nome de ideais de justiça, liberdade e democracia. Para o presente, sua história é um alerta: o regime autoritário deixou marcas profundas no tecido democrático do país e a memória desses militantes contribui para fortalecer a cultura da memória e impedir que a impunidade se perpetue.









