Neste 5 de maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa, a reflexão vai além da comemoração: é um convite para entender como um idioma nascido na Península Ibérica evoluiu, no Brasil, para se tornar um organismo vivo, multifacetado e tão cheio de personalidade que, para muitos linguistas, é quase uma língua à parte. O português brasileiro é uma manifestação cultural e histórica que carrega em suas estruturas as marcas de resistência, miscigenação e reinvenção.
Raízes milenares de uma língua viajante
O português nasceu oficialmente com a dissolução do Império Romano, por volta do século IX, como um dialeto do latim vulgar falado na região que hoje compreende Portugal e Galícia, no norte da Espanha. Suas primeiras formas escritas aparecem em documentos do século XII. Com o tempo, a língua ganhou corpo, estrutura e regras, até ser oficializada como idioma do reino português.
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Em 1500, cruzou o Atlântico com as caravelas de Pedro Álvares Cabral, encontrando nas terras brasileiras não um “vazio linguístico”, mas uma profusão de línguas indígenas – estima-se que fossem mais de mil naquela época. Esse contato não foi pacífico, nem neutro, mas fundacional.
“A língua portuguesa no Brasil passou por uma profunda tropicalização. Ela teve que dialogar com realidades fonéticas e cognitivas totalmente novas,” explica a linguista Yeda Pessoa de Castro. “Foi uma adaptação pela necessidade de sobrevivência comunicacional, e isso gerou uma língua híbrida, plástica e extraordinariamente criativa.“
A presença global da língua portuguesa
Hoje, o português é a 9ª língua mais falada do mundo, com cerca de 265 milhões de falantes espalhados por 9 países e comunidades em cinco continentes. O Brasil representa, sozinho, cerca de 81% desse total.
Distribuição de falantes da língua portuguesa no mundo (em milhões):
- Brasil: 215 milhões
- Angola: 32 milhões
- Moçambique: 31 milhões
- Portugal: 10 milhões
- Guiné-Bissau: 2 milhões
- Timor-Leste: 1,3 milhão
- Outros países: 5 milhões
Apesar do alcance, o português ainda é pouco ensinado como segunda língua no exterior. Muitos o enxergam com curiosidade, mas não reconhecem seu valor acadêmico, literário e político.
“Existe um certo exotismo ao se referir ao português do Brasil,” afirma Helena Santos, professora de Línguas Românicas na Universidade de Oxford. “Muitos enxergam nossa forma de falar como musical, mas poucos percebem a complexidade sintática, a riqueza vocabular e a contribuição literária que o Brasil oferece ao mundo.”
O português que se fala com o corpo
Se há algo que diferencia o português brasileiro é sua prosódia. A musicalidade do idioma aqui falado é rica em variações melódicas e gestuais. Fala-se com a boca, mas também com as mãos, com os olhos e com o ritmo.
Isso é resultado não apenas da influência indígena e africana, mas de uma maneira própria de existir no mundo. O português do Brasil é intuitivo, afetivo e, por vezes, transgressor de regras gramaticais clássicas — sem, com isso, ser menos legítimo.
“A dificuldade de muitos estrangeiros em aprender o português brasileiro está nessa flexibilidade informal, nas sutilezas semânticas e no uso dos tempos verbais que mudam de região para região,” comenta o professor Ataliba Castilho, da USP. “É uma língua que exige sensibilidade para o contexto.”
Desafios de uma língua com muitos brasis
Falar português no Brasil é também enfrentar abismos educacionais. De acordo com os dados mais recentes do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes(PISA), aproximadamente 50% dos estudantes brasileiros do ensino médio não atingem níveis satisfatórios de compreensão de textos.
Esse dado revela não apenas uma deficiência estrutural no ensino da língua, mas também um obstáculo para a ascensão social e profissional de milhões de brasileiros.
“É uma língua que exige investimento para ser dominada, e esse investimento nem sempre é garantido pelo Estado,” aponta Noslen Borges, professor e influenciador educacional. “Mas mesmo diante da precariedade, o brasileiro faz da língua um instrumento de criação e resistência.”
A língua que canta, luta e acolhe
Do rap ao repente, do samba ao slam, o português brasileiro é, sobretudo, veículo de expressão social. Ele canta as dores da periferia, narra as alegrias do cotidiano, cria memes e reinventa significados.
Num mundo cada vez mais pautado por algoritmos e padrões globais de comunicação, a permanência e valorização do português brasileiro — com suas variações regionais, seus neologismos e sua poesia urbana — é um ato político e cultural.
“Nossa língua não é inferior, ela é plural. E é nessa pluralidade que mora sua força,” conclui Yeda Pessoa de Castro.
Conclusão: uma identidade em constante reinvenção
Neste Dia Mundial da Língua Portuguesa, o Brasil tem muito a celebrar — mas também muito a reivindicar. O reconhecimento global da beleza e da sofisticação do português brasileiro é um passo importante para que ele deixe de ser apenas uma “curiosidade” e se afirme como o que já é: uma das maiores expressões linguísticas da humanidade.